Folha de S. Paulo
É uma ênfase na convivência, na pacificação e
na possibilidade de harmonia
Ouvimos com frequência sobre o excesso de
ações judiciais tramitando no sistema judiciário brasileiro (segundo o Conselho
Nacional de Justiça, eram 84 milhões em 2023), o que pode justificar em parte a
também propalada morosidade nas soluções dos conflitos. Faz parte dessa
realidade o fato de o Brasil ter a maior quantidade de advogados por habitante
do mundo (1 para cada 253 pessoas).
Esses números superlativos não significam o
atendimento ao que assegura a Constituição de
1988 quanto ao acesso de todos à Justiça (parágrafo 4º, art. 153: "a lei
não poderá excluir da apreciação do Poder Judiciário qualquer lesão de direito
individual"). Sabe-se que um número restrito de litigantes concentra
percentual expressivo dos casos em tramitação.
Mas há um ponto menos explorado nesse cenário complexo: o insuficiente estímulo à conciliação, que poderia não apenas reduzir a sobrecarga do Judiciário mas também atender melhor a população, a partir de soluções mais rápidas de litígios.
De fato, o Poder Judiciário não deve ter o
monopólio na solução de conflitos, e nem tudo precisa ser resolvido por
tribunais. Têm contribuído nessa direção, entre outros, a Lei de Ação Civil
Pública (7.347/85), a Lei de Pequenas Causas (7.244/84), os Juizados Especiais
(9.099/95) e as leis de mediação (lei 13.140/2015) e de arbitragem (lei
9.307/1996).
No entanto, é preciso avançar. Na questão da
prioridade à via judicial em detrimento de soluções conciliatórias, é
importante analisar o processo de formação dos operadores do direito (juízes,
integrantes do Ministério Público, advogados públicos e privados).
Faculdades de direito, mesmo as mais
modernas, tradicionalmente valorizam a "cultura da sentença", o
procedimento contencioso para os conflitos de interesse. Trata-se de solução
imperativa, defendida por advogados e proferida por um representante do Estado,
em que prevalece um jogo de soma zero, a decisão do que é "certo"
versus o que é "errado".
A estrutura curricular das faculdades de
direito incentiva uma formação baseada em parâmetros adversariais, as decisões
impositivas. Em resumo: o melhor advogado é o "pitbull".
Mudanças legislativas e regulações não têm
tido os impactos pretendidos. Há portaria do MEC obrigando disciplinas de
conciliação, e a Resolução 125 do CNJ de
2010 instituiu a Política Nacional de Tratamento Adequado dos Conflitos de
Interesse. Mas tornou-se disciplina optativa, uma resposta
"burocrática", não uma efetiva mudança de concepção.
Não há, assim, a ampla disseminação da
"cultura da pacificação", a busca de meios adequados de solução de
conflitos, em jogo de "ganha-ganha". Nessa visão, as partes poderiam
ser sujeitos, interferindo ativamente para o consenso.
É uma ênfase na convivência, na pacificação, na possibilidade de harmonia.
*Cientista política, professora sênior da USP, dirigiu o Departamento de Pesquisas Judiciárias do CNJ na gestão da ministra Cármen Lúcia
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