domingo, 9 de março de 2025

Momento de decisão - Merval Pereira

O Globo

Uma Corte Suprema tem a sua autoridade e reputação baseadas no respeito que demonstre às regras de direito

O momento em que o país se prepara acompanhar um julgamento em que os acusados, muitos militares, incluído um ex-presidente da República, respondem por uma tentativa de golpe de Estado, é o mais adequado para a leitura do novo livro do jurista Gustavo Binenbojm, chamado “Freios e contrapesos: independência, controles recíprocos e equilíbrio entre Poderes”, que será lançado em breve. Trata das questões atuais e controversas sobre o sistema político brasileiro, como emendas de orçamento, controle da segurança pública pelo STF e o presidencialismo congressual.

Para Binenbojm, a Constituição brasileira de 1988, promulgada sob os auspícios da redemocratização, erigiu uma espécie de poliarquia no país, consagrando um complexo sistema de freios e contrapesos entre os Poderes da República. A conquista e a preservação do regime democrático há quase quatro décadas é um ativo da sociedade brasileira que merece ser celebrado. Mas isso não deve interditar, ressalva, o debate sobre a qualidade da democracia que praticamos e a funcionalidade do nosso sistema político.

A defesa da democracia pelo STF nos últimos anos é objeto de um exame objetivo e imparcial: o autor reconhece a contribuição da Corte (e do Tribunal Superior Eleitoral) para a preservação da institucionalidade, da lisura eleitoral e da atuação dos entes subnacionais no combate à pandemia da Covid-19; mas, de outro lado, aponta a necessidade imperiosa de que “qualquer medida judicial se revista dos requisitos formais e materiais de validade jurídica exigidos pela lei e pela Constituição”.

A prerrogativa de errar por último, na definição de Rui Barbosa, não transforma erros em acertos, adverte o constitucionalista, nem exime quem a exerça do escrutínio da opinião pública. “Freios e contrapesos: independência, controles recíprocos e equilíbrio entre Poderes” é, ao mesmo tempo, na definição do autor, “um diagnóstico do que tem sido, em seu evolver histórico, a experiência concreta das democracias constitucionais, especialmente no Brasil, e uma reflexão sincera sobre como torná-las regimes de governo dotados de mais legitimidade, eficiência, funcionalidade e estabilidade”.

Anomalias do Executivo – mesmo daquelas que ameacem a independência do Poder Judiciário – não justificam anomalias judiciais. Two wrongs don’t make a right (dois erros não fazem um acerto). “ Só quem vivenciou as entranhas do poder no período histórico em tela poderá dizer, com acuidade, se todas as posturas do STF tinham razão de ser. É possível que as ameaças fossem ainda piores do que supúnhamos ser. Mas o ponto é que onde os fins passam a justificar os meios, já não existe mais um Estado de direito. Onde o julgador é investigador, acusador e vítima do crime, toda a noção de devido processo legal foi subvertida”.

Isso já seria grave se fosse uma prática isolada de um juiz obscuro, lembra Binenbojm. “Mas se quem o faz é a Suprema Corte, então a situação é mais séria, em virtude de sua posição terminal na hierarquia do Poder Judiciário”. Ele ressalta que é preciso reconhecer que o STF tem uma folha de serviços relevantes prestados à democracia no Brasil, sobretudo sob a égide da Constituição de 1988. “Sua jurisprudência em matéria de direitos fundamentais, especialmente no campo das liberdades públicas, representa um avanço civilizatório e um dos pilares da nossa democracia”.

Mas cumpre também reconhecer que alguns excessos têm sido cometidos, “ainda quando praticados sob a justificativa de defesa do próprio regime democrático”. Mesmo inexistindo uma instância superior que os corrija, lembra Binenbojm, uma Corte Suprema tem a sua autoridade e reputação baseadas no respeito que demonstre às regras de direito que ela mesma declara. “De outra parte, precisamos entender que a democracia no Brasil chegou a uma encruzilhada: para não perdermos o direito de escolher os nossos representantes no futuro, precisamos escolher a democracia já”.


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