O Globo
Bolsonaro é um réu que facilita o trabalho
da acusação, pois suas próprias declarações acabam servindo como provas contra
ele
Desde que se tornou réu, Jair Bolsonaro
tem se esforçado para progredir para a situação de réu confesso. A entrevista à
Folha de S.Paulo vai nessa direção. Ele disse que não esperava o resultado das
eleições e, por isso, passou a pensar em alternativas. O único caminho possível
após uma derrota eleitoral é respeitar a decisão, reconhecer a derrota e
preparar a transição. Não foi o que ele fez.
“Eu conversei com as pessoas, dentro das quatro linhas, que vocês estão cansados de ouvir. O que a gente pode fazer? Daí foi olhado lá, sítio, defesa, 142, intervenção”, disse ele à repórter Marianna Holanda. Está aí a confissão. Nada havia de anormal no país para se pensar em alternativas. As figuras constitucionais do estado de defesa e do estado de sítio têm que ter uma causa: “comoção grave de repercussão nacional”. Quem estava em comoção era ele, que “não esperava o resultado”, apesar de ter ficado atrás em todas as pesquisas, durante todo o tempo da disputa eleitoral. O problema era dele e não do país. Sobre o artigo 142, já havia encomendado uma interpretação torta, mas que evidentemente não se sustentou. Por fim, ele próprio usa a palavra autoexplicativa “intervenção” como alternativa analisada nesse momento pós- eleitoral.
“Não tem problema nenhum conversar:
conversa primeiro com o ministro da Defesa. Depois na segunda reunião que
apareceu os caras lá. Existe algo fundamentado, concretamente, para a gente
buscar uma alternativa? Chegou à conclusão de que, mesmo que tivesse, não vai
prosseguir. Então esquece”, disse, na entrevista à Folha, nesta sucessão de
frases sem sujeito.
De novo, ele produz provas contra si
mesmo. Ninguém o obrigou. Quando diz “então esquece”, o país não pode esquecer.
O ex-presidente está admitindo que, no exercício do mandato, analisou tudo, até
intervenção, contra o resultado eleitoral que o desfavoreceu. E, nessa reunião
“com os caras lá”, chegou à conclusão de não prosseguir.
Em outro trecho, repete: “Reuni duas vezes
com os comandantes militares, com umas outras pessoas perdidas por ali. Mas
nada com muita profundidade porque quando você perde uma eleição, você fica um
peixe fora d’água”. Ele pode se sentir desconfortável, um peixe fora d’água, ao
perder a eleição. Mas não pode usar o fato de ainda ser presidente para
convocar o ministro da Defesa e “os caras lá”, e discutir um golpe de Estado
contra o resultado das urnas.
Cada palavra dele volta-se contra ele.
“Não tem problema nenhum conversar”. Tem sim. É conversa sobre o cometimento de
um crime. É exatamente isso que está tipificado na lei de Defesa do Estado de
Direito, que o próprio promulgou, e na qual agora está enquadrado.
Os dias de ontem e hoje, 31 de março e
primeiro de abril, não nos deixam esquecer a dimensão da tragédia que se abre
para o país quando ocorre o que está implícito nessas conversas que o
ex-presidente quer tratar como banais, corriqueiras, sem profundidade e que
devam ser esquecidas. “Conhecemos o caminho maldito”, avisou Ulysses na
promulgação da Constituição. Conhecemos demais, na verdade. Nada há de trivial
no que conta e caberá a ele se defender com o apoio dos seus advogados, porque
essas conversas que confessa ter tido eram crimes. E as provas coletadas
mostram que foram muito além das conversas.
Em determinado momento na entrevista,
Bolsonaro diz: “se você quer dar golpe, troca o ministro da Defesa, troca o
comandante da Força, bota um pessoal disposto a sair fora das quatro linhas”.
Foi exatamente o que ele fez em 29 de março de 2021. Ele demitiu o ministro
Fernando Azevedo e nomeou o general Walter Braga Netto. Em seguida, trocou os
três comandantes militares pelos general Paulo Sérgio Nogueira, Brigadeiro
Baptista Júnior, e almirante Almir Garnier. Dos quatro nomeados naquele
momento, três são réus com ele por tentativa de golpe de Estado. O jogo foi
armado um ano e oito meses antes. “Um golpe, a história nos mostra, você não
resolve em meses, anos”, explica o ex-presidente. É isso. É ele que diz.
Bolsonaro é um réu que facilita o trabalho da acusação.
O Brasil está em terreno novo nesse
momento ao tornar réus o ex-presidente e generais de quatro estrelas por
tentativa de golpe de Estado. Levá-los a julgamento é mudar a História da
República pela raiz.
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