quinta-feira, 29 de maio de 2025

Grossi aponta os riscos da ordem nuclear - Maria Cristina Fernandes

Valor Econômico

Que garantias há de que o Irã, ao abrir mão de seu programa nuclear, não ficará mais suscetível a um ataque israelense?

Em 1994, o memorando de Budapeste, do qual quatro países são signatários, Estados Unidos, Rússia, Reino Unido e Ucrânia, assegurou a este último que, ao abrir mão das armas nucleares soviéticas, estaria protegido de ataques. Menos de 30 anos depois, o memorando foi descumprido com a invasão russa e o debate na política ucraniana passou a ser guiado por uma pergunta: se o país não tivesse devolvido as armas nucleares, teria sido invadido?

A Ucrânia poderia ter ido para os ares antes porque não teria como manter em condições de segurança aquele arsenal, mas isso não impede que a pergunta se estenda ao Irã, hoje pressionado a abrir mão de seu programa nuclear. Que garantias há de que, ao fazê-lo, o país não fique mais suscetível a um ataque israelense?

Rafael Grossi, diretor-geral da Agência Internacional de Energia Atômica, um complexo imponente com 2,3 mil funcionários encravado no centro de Viena, contorna a comparação usando outra: “Não estamos falando de quem está certo ou de quem está errado. Ou de dois pesos e duas medidas. Israel não é signatário do Tratado de Não-Proliferação Nuclear. Então eles têm uma inspeção muito limitada. Já o Irã é parte do TNP e precisa cumprir as exigências com as quais se comprometeu (...) É como na vida pessoal. Não dá para trapacear. Se não tiver o que esconder, não tem o que temer”.

Há seis anos no comando da agência, Grossi enfrenta o momento mais tenso de seu mandato, tanto pelo estresse nas relações entre Irã e Israel quanto pelas ameaças dos bombardeios russos sobre as usinas nucleares ucranianas. Do sucesso desta mediação dependem, em parte, não apenas a paz mundial, mas também suas chances para suceder o secretário-geral das Nações Unidas, Antonio Guterres, que conclui seu mandato em dezembro de 2026.

Grossi reconhece “muito seriamente” a postulação ao cargo, que caberá a um latino-americano e para o qual também concorre a ex-presidente chilena e ex-comissária da ONU para os Direitos Humano, Michelle Bachelet, mas diz que, por ora, seu foco é outro.

Depois de alcançar a adesão de 180 países, 68 anos depois de sua criação, a AIEA, reconhece Grossi, pode enfrentar um período de refluxo, particularmente no Oriente Médio. Além do Irã, Líbia, Síria e Iraque agora questionam o TNP, principal instrumento à disposição da agência para frear a corrida nuclear. “Seria um trágico erro”, diz Grossi, ao convidar seus interlocutores, um grupo de jornalistas de 20 países, entre os quais o Brasil, representado pelo Valor, a imaginar o que seria do mundo se, ao invés das cinco potências nucleares oficiais (EUA, Rússia, Reino Unido, França e China), fosse preciso lidar com um quorum ampliado de 25. Outros países, como Índia, Paquistão, Israel e Coreia do Norte teriam armas nucleares, mas não o admitem, tampouco são signatárias do TNP.

O novelo que Grossi tem a desatar não é trivial. Desde a posse de Trump, ficou evidenciada a ameaça sobre as instituições do pós-guerra. O presidente americano age para ser o avalista dos acordos e das negociações mundiais, do comércio mundial à paz, atravessando o arcabouço institucional.

A costura de Grossi para chegar à Secretaria-Geral das Nações Unidas passa pelo apoio do presidente argentino, Javier Milei, que tem uma relação próxima com Trump. A equação não o impede de cobrar americanos e russos no mesmo tom. “EUA e Rússia são depositários do TNP e, por isso, têm mais responsabilidades”.

Evita, porém, se confrontar com Trump ao comentar as medidas que reformulam a Comissão de Regulação Nuclear (NRC na sigla em inglês). Entre outras mudanças, foi determinada a abertura para reciclagem de combustível nuclear para fins comerciais e uma menor independência da NRC. Órgãos regulatórios do setor energético também foram estimulados a propiciar locais acessíveis a fontes de energia para “datacenters”.

Grossi escolhe as palavras para não se imiscuir na política doméstica americana. Explica que esteve recentemente nos EUA conversando com o secretário de Energia, Chris Wright. “A regulação trata de uma atividade em curso. Esta atividade está mudando e as tecnologias também”.

Grossi é igualmente cuidadoso ao comentar o avanço dos pequenos reatores nucleares, impulsionado, sobretudo, pela demanda das chamadas “big techs”, que tem valorizado as reservas de urânio do mundo todo, a começar pela brasileira, “a maior da região”, diz o diretor-geral da AEIA.

Ao contrário das grandes plantas, esses pequenos reatores estão planejados para funcionar próximos das unidades industriais ou de comunidades. A Rússia lidera esta tecnologia e colocou o primeiro deles em operação, mas fabricantes do mundo inteiro, a começar pela China, já desenvolvem projetos. “A energia nuclear ainda continuará a ser, em grande parte, gerada pelas grandes plantas”, diz.

A cautela tem sua razão de ser. Não dá nem para fazer uma ideia do que será a ordem mundial se, em vez de lidar com um problema enorme, como a exposição da usina nuclear ucraniana de Zaporizhzhia, já alvejada pelos russos, os alvos potenciais de grandes conflitos se pulverizarem em pequenos reatores nucleares mundo afora.

Grossi não passa o pano. Reconhece que as críticas às organizações multilaterais em função da desordem mundial são justificáveis. “Olhe para o que está acontecendo em Gaza e no Sudão, no que estão ajudando?”, indaga, com autocrítica, o diplomata argentino de 64 anos que dedicou os últimos 40 a livrar o mundo das armas.

 

 

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