Valor Econômico
Que garantias há de que o Irã, ao abrir mão
de seu programa nuclear, não ficará mais suscetível a um ataque israelense?
Em 1994, o memorando de Budapeste, do qual
quatro países são signatários, Estados Unidos, Rússia, Reino Unido e Ucrânia,
assegurou a este último que, ao abrir mão das armas nucleares soviéticas,
estaria protegido de ataques. Menos de 30 anos depois, o memorando foi
descumprido com a invasão russa e o debate na política ucraniana passou a ser
guiado por uma pergunta: se o país não tivesse devolvido as armas nucleares,
teria sido invadido?
A Ucrânia poderia ter ido para os ares antes porque não teria como manter em condições de segurança aquele arsenal, mas isso não impede que a pergunta se estenda ao Irã, hoje pressionado a abrir mão de seu programa nuclear. Que garantias há de que, ao fazê-lo, o país não fique mais suscetível a um ataque israelense?
Rafael Grossi, diretor-geral da Agência
Internacional de Energia Atômica, um complexo imponente com 2,3 mil
funcionários encravado no centro de Viena, contorna a comparação usando outra:
“Não estamos falando de quem está certo ou de quem está errado. Ou de dois
pesos e duas medidas. Israel não é signatário do Tratado de Não-Proliferação
Nuclear. Então eles têm uma inspeção muito limitada. Já o Irã é parte do TNP e
precisa cumprir as exigências com as quais se comprometeu (...) É como na vida
pessoal. Não dá para trapacear. Se não tiver o que esconder, não tem o que
temer”.
Há seis anos no comando da agência, Grossi
enfrenta o momento mais tenso de seu mandato, tanto pelo estresse nas relações
entre Irã e Israel quanto pelas ameaças dos bombardeios russos sobre as usinas
nucleares ucranianas. Do sucesso desta mediação dependem, em parte, não apenas
a paz mundial, mas também suas chances para suceder o secretário-geral das
Nações Unidas, Antonio Guterres, que conclui seu mandato em dezembro de 2026.
Grossi reconhece “muito seriamente” a
postulação ao cargo, que caberá a um latino-americano e para o qual também
concorre a ex-presidente chilena e ex-comissária da ONU para os Direitos
Humano, Michelle Bachelet, mas diz que, por ora, seu foco é outro.
Depois de alcançar a adesão de 180 países, 68
anos depois de sua criação, a AIEA, reconhece Grossi, pode enfrentar um período
de refluxo, particularmente no Oriente Médio. Além do Irã, Líbia, Síria e
Iraque agora questionam o TNP, principal instrumento à disposição da agência
para frear a corrida nuclear. “Seria um trágico erro”, diz Grossi, ao convidar
seus interlocutores, um grupo de jornalistas de 20 países, entre os quais o
Brasil, representado pelo Valor,
a imaginar o que seria do mundo se, ao invés das cinco potências nucleares
oficiais (EUA, Rússia, Reino Unido, França e China), fosse preciso lidar com um
quorum ampliado de 25. Outros países, como Índia, Paquistão, Israel e Coreia do
Norte teriam armas nucleares, mas não o admitem, tampouco são signatárias do
TNP.
O novelo que Grossi tem a desatar não é
trivial. Desde a posse de Trump, ficou evidenciada a ameaça sobre as
instituições do pós-guerra. O presidente americano age para ser o avalista dos
acordos e das negociações mundiais, do comércio mundial à paz, atravessando o
arcabouço institucional.
A costura de Grossi para chegar à
Secretaria-Geral das Nações Unidas passa pelo apoio do presidente argentino,
Javier Milei, que tem uma relação próxima com Trump. A equação não o impede de
cobrar americanos e russos no mesmo tom. “EUA e Rússia são depositários do TNP
e, por isso, têm mais responsabilidades”.
Evita, porém, se confrontar com Trump ao
comentar as medidas que reformulam a Comissão de Regulação Nuclear (NRC na
sigla em inglês). Entre outras mudanças, foi determinada a abertura para
reciclagem de combustível nuclear para fins comerciais e uma menor
independência da NRC. Órgãos regulatórios do setor energético também foram
estimulados a propiciar locais acessíveis a fontes de energia para
“datacenters”.
Grossi escolhe as palavras para não se
imiscuir na política doméstica americana. Explica que esteve recentemente nos
EUA conversando com o secretário de Energia, Chris Wright. “A regulação trata
de uma atividade em curso. Esta atividade está mudando e as tecnologias
também”.
Grossi é igualmente cuidadoso ao comentar o
avanço dos pequenos reatores nucleares, impulsionado, sobretudo, pela demanda
das chamadas “big techs”, que tem valorizado as reservas de urânio do mundo
todo, a começar pela brasileira, “a maior da região”, diz o diretor-geral da
AEIA.
Ao contrário das grandes plantas, esses
pequenos reatores estão planejados para funcionar próximos das unidades
industriais ou de comunidades. A Rússia lidera esta tecnologia e colocou o
primeiro deles em operação, mas fabricantes do mundo inteiro, a começar pela
China, já desenvolvem projetos. “A energia nuclear ainda continuará a ser, em
grande parte, gerada pelas grandes plantas”, diz.
A cautela tem sua razão de ser. Não dá nem
para fazer uma ideia do que será a ordem mundial se, em vez de lidar com um
problema enorme, como a exposição da usina nuclear ucraniana de Zaporizhzhia,
já alvejada pelos russos, os alvos potenciais de grandes conflitos se
pulverizarem em pequenos reatores nucleares mundo afora.
Grossi não passa o pano. Reconhece que as
críticas às organizações multilaterais em função da desordem mundial são
justificáveis. “Olhe para o que está acontecendo em Gaza e no Sudão, no que
estão ajudando?”, indaga, com autocrítica, o diplomata argentino de 64 anos que
dedicou os últimos 40 a livrar o mundo das armas.
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