O Globo
Harvard não pode combater Trump sem resgatar
os valores abandonados do pluralismo de ideias e do debate aberto
‘Ele tem um longo histórico de críticas às elites das quais, desesperadamente, deseja aceitação.’ Timothy O’Brien, biógrafo de Trump, usa as lentes da psicologia para interpretar o ressentimento que o presidente nutre pelas universidades da Ivy League. Trump estudou numa delas, que nunca lhe ofereceu um título honorífico. Seu vice, J.D. Vance, graduado pela Escola de Direito de Yale, esclareceu que a hostilidade ultrapassa a esfera pessoal. Em discurso à Conferência Nacional do Conservadorismo, em 2021, intitulado As Universidades são o Inimigo, conclamou o movimento a “atacar agressivamente as universidades neste país”.
Segundo o vice, as universidades formam a
vanguarda do “globalismo” — da guerra de extermínio das “elites sem pátria”
contra as “nações de sangue”. As elites odiadas defendem as instituições
internacionais, o multilateralismo, a democracia liberal e a separação de
Poderes. Pior: atacam o patriarcalismo e a família tradicional, desprezam o
fundamento cristão da nação americana e admitem uma corrosiva imigração.
O governo Trump segue o programa exposto por
Vance, exigindo a rendição acadêmica a uma lista de imposições intrusivas da
Casa Branca. A Universidade Columbia capitulou à ofensiva inicial, apenas para
receber novos ultimatos. Harvard aprendeu
a lição, decidindo resistir. “A Universidade não renunciará à sua independência
ou cederá seus direitos constitucionais”, escreveu o presidente de Harvard,
Alan Garber, engajando um exército de advogados na batalha contra o corte de
verbas públicas e a supressão da imunidade tributária anunciados pelo
presidente.
Harvard versus Trump não interessa apenas à
Ivy League. O tema da autonomia acadêmica junta-se a tantos outros em que a
Casa Branca busca exercer prerrogativas exorbitantes. No confronto judicial,
que chegará à Suprema Corte, o que está em jogo são os limites do poder
presidencial — no fim das contas, a estabilidade da democracia nos Estados Unidos.
Mas Harvard versus Trump deflagrou uma
batalha concomitante: Harvard versus Harvard. A ex-presidente Claudine Gay
renunciou em janeiro de 2024, devorada por sua leniência diante dos protestos
estudantis contra a guerra em Gaza que degeneraram em manifestações de
antissemitismo. Garber convenceu-se de que, para organizar a defesa da
autonomia acadêmica, precisa romper a câmara de eco construída em torno da
bíblia identitária. Harvard não pode combater Trump sem resgatar os valores
abandonados do pluralismo de ideias e do debate aberto.
“Reconhecemos que temos obrigações
inacabadas, escreveu, chamando a universidade a “fazer jus a seus ideais” pela
reafirmação de uma “cultura de livre investigação, diversidade de pontos de
vista e exploração acadêmica”. Para maior clareza, enfatizou a necessidade de
“concentrar-se nos indivíduos e em suas características singulares, em vez de
em sua raça”.
Os passos iniciais apontam o rumo. No ano
passado, finalmente, a Faculdade de Artes e Ciências renunciou à prática
inquisitorial de exigir de candidatos à docência uma declaração de compromisso
com as políticas de diversidade identitária. Há pouco, Harvard cancelou o apoio
oficial a celebrações de graduação por grupos exclusivos de negros, latinos e
LGBT+. Agora, divulgou um relatório descrevendo os constrangimentos
antissemitas e islamofóbicos nos campi.
Harvard versus Harvard é uma batalha tão
desafiadora quanto Harvard versus Trump. O presidente universitário já enfrenta
a reação dos movimentos identitários que deitaram raízes entre minorias
influentes de alunos e professores. Acusam-no, em suma, de colaborar com a Casa
Branca, restaurando uma ordem que parecia enterrada para sempre.
Garber, porém, tem razão. Fechando-se num
calabouço ideológico, Harvard conferiu verossimilhança às caricaturas
desenhadas pela extrema direita contra as universidades. A vitória na batalha
externa depende do triunfo na batalha interna, pois a sociedade pode ser
persuadida a proteger a autonomia acadêmica, mas não defenderá a captura da
universidade por seitas identitárias. Vale nos Estados Unidos — e, anote aí,
vale no Brasil.
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