segunda-feira, 12 de maio de 2025

Harvard versus Trump - Demétrio Magnoli

O Globo

Harvard não pode combater Trump sem resgatar os valores abandonados do pluralismo de ideias e do debate aberto

‘Ele tem um longo histórico de críticas às elites das quais, desesperadamente, deseja aceitação.’ Timothy O’Brien, biógrafo de Trump, usa as lentes da psicologia para interpretar o ressentimento que o presidente nutre pelas universidades da Ivy League. Trump estudou numa delas, que nunca lhe ofereceu um título honorífico. Seu vice, J.D. Vance, graduado pela Escola de Direito de Yale, esclareceu que a hostilidade ultrapassa a esfera pessoal. Em discurso à Conferência Nacional do Conservadorismo, em 2021, intitulado As Universidades são o Inimigo, conclamou o movimento a “atacar agressivamente as universidades neste país”.

Segundo o vice, as universidades formam a vanguarda do “globalismo” — da guerra de extermínio das “elites sem pátria” contra as “nações de sangue”. As elites odiadas defendem as instituições internacionais, o multilateralismo, a democracia liberal e a separação de Poderes. Pior: atacam o patriarcalismo e a família tradicional, desprezam o fundamento cristão da nação americana e admitem uma corrosiva imigração.

O governo Trump segue o programa exposto por Vance, exigindo a rendição acadêmica a uma lista de imposições intrusivas da Casa Branca. A Universidade Columbia capitulou à ofensiva inicial, apenas para receber novos ultimatos. Harvard aprendeu a lição, decidindo resistir. “A Universidade não renunciará à sua independência ou cederá seus direitos constitucionais”, escreveu o presidente de Harvard, Alan Garber, engajando um exército de advogados na batalha contra o corte de verbas públicas e a supressão da imunidade tributária anunciados pelo presidente.

Harvard versus Trump não interessa apenas à Ivy League. O tema da autonomia acadêmica junta-se a tantos outros em que a Casa Branca busca exercer prerrogativas exorbitantes. No confronto judicial, que chegará à Suprema Corte, o que está em jogo são os limites do poder presidencial — no fim das contas, a estabilidade da democracia nos Estados Unidos.

Mas Harvard versus Trump deflagrou uma batalha concomitante: Harvard versus Harvard. A ex-presidente Claudine Gay renunciou em janeiro de 2024, devorada por sua leniência diante dos protestos estudantis contra a guerra em Gaza que degeneraram em manifestações de antissemitismo. Garber convenceu-se de que, para organizar a defesa da autonomia acadêmica, precisa romper a câmara de eco construída em torno da bíblia identitária. Harvard não pode combater Trump sem resgatar os valores abandonados do pluralismo de ideias e do debate aberto.

“Reconhecemos que temos obrigações inacabadas, escreveu, chamando a universidade a “fazer jus a seus ideais” pela reafirmação de uma “cultura de livre investigação, diversidade de pontos de vista e exploração acadêmica”. Para maior clareza, enfatizou a necessidade de “concentrar-se nos indivíduos e em suas características singulares, em vez de em sua raça”.

Os passos iniciais apontam o rumo. No ano passado, finalmente, a Faculdade de Artes e Ciências renunciou à prática inquisitorial de exigir de candidatos à docência uma declaração de compromisso com as políticas de diversidade identitária. Há pouco, Harvard cancelou o apoio oficial a celebrações de graduação por grupos exclusivos de negros, latinos e LGBT+. Agora, divulgou um relatório descrevendo os constrangimentos antissemitas e islamofóbicos nos campi.

Harvard versus Harvard é uma batalha tão desafiadora quanto Harvard versus Trump. O presidente universitário já enfrenta a reação dos movimentos identitários que deitaram raízes entre minorias influentes de alunos e professores. Acusam-no, em suma, de colaborar com a Casa Branca, restaurando uma ordem que parecia enterrada para sempre.

Garber, porém, tem razão. Fechando-se num calabouço ideológico, Harvard conferiu verossimilhança às caricaturas desenhadas pela extrema direita contra as universidades. A vitória na batalha externa depende do triunfo na batalha interna, pois a sociedade pode ser persuadida a proteger a autonomia acadêmica, mas não defenderá a captura da universidade por seitas identitárias. Vale nos Estados Unidos — e, anote aí, vale no Brasil.

Nenhum comentário: