O ciclo da escassez só será rompido com uma
mudança de visão
Um dos maiores erros do século XX, além da criação da bomba atômica, foi vincular o tema da pobreza à economia, como se a tragédia fosse apenas problema de renda, e não questão de fundo moral e de gestão pública. A escravidão só foi derrotada quando passou a provocar horror e indignação entre os não escravizados. Por ser apenas falta de renda, a permanência da pobreza não causa indignação moral, apenas incômodo passageiro, o que faz aceitável a existência de pessoas famintas, crianças sem escolas de qualidade, famílias morando na rua ou em casas sem saneamento. Perde-se naturalmente impulso político para a superação do que é visto como crise, e não como tragédia.
A abolição da escravidão só avançou quando
houve comoção moral, como ocorreu na Inglaterra, graças sobretudo à luta de
William Wilberforce. Em Flores,
Votos e Balas, Angela Alonso mostra que no Brasil isso aconteceu
após 1880, quando foi travada uma luta moral que converteu a consciência
escravocrata nacional em abolicionista. Mas não tivemos líderes que
indignassem a sociedade diante da constância da pobreza. É como se, na época da
escravidão, os defensores da liberdade restringissem sua bandeira ao aumento da
renda dos escravizados, para emancipar alguns, sem abolir de vez a escravatura;
ou se Nelson Mandela se contentasse com programas de cotas e bolsas
universitárias para fazer os negros sul-africanos serem aceitos como brancos,
sem extirpar o apartheid.
“Não há impulso político para a superação de
algo que é visto como crise, e não como tragédia”
Hoje, é preciso
transformar a convivência com a pobreza em uma nova consciência: a da segunda
abolição — justamente a da pobreza. Para tanto, devemos superar a visão
economista, que é a da pobreza entendida como mera escassez de renda, e não
como a privação do acesso à cesta de bens e serviços essenciais à vida. Após
décadas de crescimento econômico, a sociedade não sentiu indignação moral
diante da continuidade do quadro de pobreza. Tampouco compreendeu que sua
superação não virá automaticamente com o crescimento do PIB e a expansão da
renda social, como se isso garantisse a cada brasileiro pobre o acesso pleno
àquilo que necessita — saúde, educação, segurança.
Se houvesse verdadeira indignação, e ela se
traduzisse em mobilização política, a pobreza não resistiria a poucos anos de
uma estratégia social focada em erradicá-la. Para isso, é preciso transformar a
tolerância em indignação e formar uma consciência pela segunda abolição — a da
pobreza. A simples distribuição da carga fiscal na arrecadação é necessária do
ponto de vista moral, mas ela não erradicará a pobreza se os recursos
arrecadados não forem usados para garantir a oferta pública dos bens e serviços
cuja ausência define a pobreza. Ela continuará existindo se os recursos da
justiça tributária forem dragados por corrupção, mordomias, salários
milionários ou investimentos que beneficiam apenas o “andar de cima”.
A justiça fiscal só será abolicionista se for
utilizada para financiar o acesso de todos aos bens e serviços públicos
essenciais, especialmente para implantar um sistema nacional público de
educação com qualidade e equidade, capaz de elevar a produtividade da economia,
aumentar a renda nacional, promover sua distribuição e induzir participação
política na direção de romper o círculo vicioso que faz a permanência da
pobreza.
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