Lula não venceu um oponente. Tocou em feridas abertas. Despertou memórias inconciliadas. Provocou, com sua vitória, não apenas a derrota de um projeto anterior, mas o retorno do medo, o acirramento dos ressentimentos e a reanimação de uma máquina de negação que opera em silêncio, com precisão cirúrgica. A oposição não desapareceu com a derrota de Bolsonaro. Antes, se alicerçou. Reorganizou-se com disciplina. Não apenas resiste, mas disputa, com intensidade e inteligência, o campo simbólico e concreto da política nacional. O bolsonarismo não é mero eco do passado. É estrutura viva, operante, ardilosa. Tem narrativa, tem fé, tem povo. Tem um líder que, mesmo silenciado por circunstâncias jurídicas, permanece como espelho e estandarte.
Mas seria injusto, e também simplista,
atribuir o cerco à oposição. O que mais ameaça o governo Lula é o edifício do
próprio Estado. Uma arquitetura institucional deformada pelo tempo e por
interesses que se sobrepõem ao bem comum. O Brasil tornou-se um labirinto onde
o presidencialismo é ilusão e o Parlamento, poder absoluto. Um parlamentarismo
informal governa por dentro, sorrateiro, agindo com legalidade mas sem
legitimidade, manobrando orçamentos, estrangulando reformas, ditando as regras
com mãos invisíveis e vontades locais.
Ali, naquele Congresso que deveria ser a casa
do povo, instalou-se uma lógica feudal. Cada deputado é senhor de seu
território, e cada voto, uma moeda. O orçamento virou espólio. A
governabilidade, um leilão. O pacto nacional se dilui em emendas secretas,
barganhas opacas, promessas efêmeras. A nação desaparece em meio a um
emaranhado de interesses regionais, acordos paroquiais, cruzadas religiosas e
pactos corporativos. O Estado se dissolve em feudos, e a política vira negócio.
É a teocracia disfarçada de moralidade. É o corporativismo travestido de
convicção. É o particularismo como método de dominação.
Neste cenário, Lula caminha sobre pedras e
pontes quebradas. Exige-se dele o impossível. Querem que governe como se
tivesse as rédeas do orçamento, como se não houvesse muralhas entre sua caneta
e o destino do povo. Querem que entregue milagres sem tocar nas feridas. Que
mantenha a dignidade de um estadista enquanto é cercado por interesses que
transformam o Executivo em vitrine e o Legislativo em cofre. A fome do povo
continua. As urgências sociais se acumulam. Mas quem controla os recursos, quem
determina o tempo das reformas, quem fixa os limites da ação, está aquém da
luz, além do controle direto. Governa quem distribui as emendas, não quem
assume as responsabilidades históricas.
O Brasil tornou-se, assim, uma democracia
sitiada. As instituições funcionam, mas não cooperam. O sistema se move, mas
não avança. Há eleições, mas falta projeto. Há alternância de poder, mas não há
alternância de lógica. O bolsonarismo, com sua astúcia e radicalidade, ocupa os
vácuos. Alimenta-se do desencanto. Atua nas frestas. Mobiliza afetos, organiza
redes, forja verdades paralelas. Sua força está na continuidade, na disciplina
e na capacidade de traduzir o medo em discurso, a frustração em arma. É um movimento
com povo, com gramática e com fúria. Mas também com método e elegância
estratégica. Não deve ser subestimado.
Enquanto isso, a conjuntura internacional
também fere. O mundo se ergue em conflitos, rivalidades e impasses. O
multilateralismo agoniza. A diplomacia cede espaço à força. O Brasil, ao se
alinhar a uma política externa altiva, ao insistir na cooperação Sul-Sul, ao
retomar a utopia de um mundo multipolar, torna-se incômodo. Passa a ser
observado com desconfiança. Em alguns casos, é alvo. A guerra é geopolítica,
mas seus reflexos se manifestam no campo da economia, nas decisões de
investimento, nas negociações diplomáticas, nas disputas comerciais.
Lula resiste. Não apenas com palavras, mas
com paciência. Sua jornada é a de um andarilho experiente que conhece o
deserto, mas carrega água para os outros. Não cede à tentação do autoritarismo.
Não busca atalhos. Não explode, ainda que tenha razões. Escolheu governar com
responsabilidade, quando poderia apenas sobreviver. E, nesse gesto, revela
grandeza. Mas a maratona é longa, e o cerco é metódico. O tempo urge, o povo
cobra, e a democracia, se não for cuidada, esgarça.
O desafio é profundo. Não basta eleger um
presidente. É preciso reconstruir a ideia de República. O que está em jogo não
é apenas o mandato de um líder, mas o futuro de um país. É preciso romper com o
fatalismo da ingovernabilidade. É preciso nomear com elegância os obstáculos e
enfrentá-los com coragem. A crítica mais aguda não deve mirar os adversários
que se apresentam com franqueza. Deve mirar os pactos espúrios, os bastidores
sem luz, os acordos de ocasião que sabotam o futuro com ares de normalidade.
Lula governa um país que ainda precisa
decidir se deseja ser governado. A tarefa é imensa. A travessia, dura. Mas há
beleza na resistência. Há sentido na persistência. E há esperança na firmeza de
quem, mesmo cercado, insiste em caminhar. Não em direção ao poder pelo poder,
mas à política como projeto de país. Não à captura do Estado, mas à sua
devolução ao povo.
Por isso, é preciso continuar. Mesmo quando
tudo parece ruir. Mesmo quando a noite é espessa. Porque a maratona não é
apenas esforço. É também destino. E o Brasil, por mais contraditório que seja,
ainda pulsa com a possibilidade de se tornar nação. Não uma soma de interesses.
Mas um corpo coletivo, justo, plural e inteiro.
Essa é a aposta. Esse é o desafio. Essa é a
poesia política que Lula, cercado, tenta escrever a cada novo dia.
* Sociólogo, cientista político e professor da UFRJ
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