Correio Braziliense
O lado bom da humanidade está nos pequenos
gestos, nos desinteressados afetos e carinhos puros dos namorados, dos casais e
dos heróis que dão a vida pelos outros, nas missões de caridade espalhadas pelo
mundo
Não é falta de assunto. O Brasil está vivendo
uma tempestade de crises. E a humanidade está se agredindo com a demonstração
de uma violência devastadora que nos fere a alma no testemunho do que acontece
em Gaza, na Ucrânia, na Líbia e em outros conflitos menores, além do terrorismo
desumano que espreita em qualquer lugar, fazendo vítimas no mundo inteiro.
Mas não é disso que vou tratar: é justamente do lado bom da humanidade, que está nos pequenos gestos, nos desinteressados afetos e carinhos puros dos namorados, dos casais e dos heróis que dão a vida pelos outros, nas missões de caridade espalhadas pelo mundo inteiro, salvando a vida de mães, pais, filhos e órfãos.
Escrevo com a alma cheia de reconhecimento da
bondade humana, da pureza de alguns gestos que nos comovem e nos levam a
meditar sobre o coração de homens e mulheres.
Sou testemunho de alguns desses gestos que
marcaram a minha vida. Certa vez, perto do Natal, fui visitar os enfermos de
UTI levando uma palavra de conforto aos doentes. Sempre o fiz no anonimato. No
Hospital Sarah de Brasília, parei ao lado do leito de uma menina que estava em
seus últimos suspiros. Tinha me aproximado dela ao perceber seu estado. Tive um
gesto de carinho com ela e perguntei-lhe o que desejava de presente de Natal.
Ela me respondeu com dificuldade: "Meu pai tinha uma carroça em que
trabalhava para dar de comer para minha mãe e meus irmãos. Caiu numa
ribanceira, e o jumento morreu. Peço que dê um jumento para ele."
Na época, publiquei na Folha de S.Paulo,
na coluna que ali escrevia, uma crônica sobre este fato, e até hoje o rememoro
com a certeza de como o ser humano é bom: um jumento para o pai foi o pedido
que ela fez à beira da morte!
Pois recebi agora um presente muito
diferente, mas que também mostra a bondade mais pura: um amigo meu de Sucupira
do Norte, a mais simples das pessoas, trouxe, em meio ao drama que está
passando, com seu pai internado no Hospital Aldenora Bello, um presente para
mim: uma galinha, um pouco de mel de tiúba e cascas de jatobá, me dizendo que
esse era um remédio para minha velhice ser prolongada. Que coisa admirável.
Esse talvez seja o presente melhor que recebi nos últimos anos. O mel é ouro, o
frango é prata, o jatobá, diamante.
Cristo tem uma pregação sobre presentes
quando conta da viúva pobre que depositou no cofre das esmolas duas moedas
pequenas, de pouco valor. Os ricos depositavam grandes dádivas. Jesus diz a
seus discípulos: "Esta viúva deu mais do que todos os outros." E
acrescentou: "Ela doou aquilo que tem para viver, na sua pobreza".
Realmente, nem todos os presentes suntuosos
demonstram generosidade. O mais conhecido deles é aquele que os gregos relatam
em sua mitologia, pelo que até hoje se diz quando um presente é ruim:
"Isso foi um presente de grego." O fato se refere ao cerco de Troia,
que durava 10 anos. Então, os inimigos mandaram de presente um cavalo de
madeira muito bonito e grande à cidade. À noite, depois que o cavalo passou
pelo portão, de dentro saíram muitos soldados que abriram todas as portas da
cidade e por elas entrou o Exército grego. Esses presentes são da maldade.
Mas há, sim, muitos presentes generosos que
mostram que os homens são bons. A Princesa Isabel, aquela que libertou os
nossos escravos e assinou a Lei Áurea, deu um grande presente, este de Rei, à
Nossa Senhora Aparecida: uma coroa que está até hoje sobre Sua cabeça: uma bela
coroa de ouro e brilhantes. Certamente, essa prova de fé e reverência não era
caridade, mas homenagem e devoção. Era aquilo de que Cristo falou, de excesso
em sua fortuna.
Mas o presente de uma atitude, de uma
vontade, e não algo material, recebi do meu bisneto Antônio, que mora em
Fortaleza. Ele tinha cinco anos quando esse fato aconteceu. Era seu
aniversário, e sua mãe, minha adorável neta Ana Thereza, criatura bela de alma
e também fisicamente bela, fez uma festinha para o filho e perguntou-lhe o que
queria ganhar de presente naquele dia em que completaria seis anos, já sabendo
ler e escrever. Antônio respondeu: "Mamãe, eu peço a Nossa Senhora para
mandar baixar o preço das passagens aéreas para São Luís pra gente viajar pra
lá e ver meu biso (bisavô)".
Fiquei derramado em felicidade quando minha
neta logo telefonou contando seu pedido. É que ela, quando o filho pedia para
ir a São Luís, onde hoje moramos, respondia sempre que o preço alto das
passagens aéreas impedia muitas viagens para cá.
Eu, com esses gestos de bondade e pureza, não
vou pedir para baixar o preço das passagens, mas vou tomar meu chá de jatobá e,
na minha idade, não vou deixar de olhar para este mundo cão e dizer em alto
berro: o homem e a mulher são boas e adoráveis criaturas!
*José Sarney — ex-presidente da República, escritor e imortal da Academia Brasileira de Letras
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