quarta-feira, 20 de agosto de 2025

Livro clássico mostrou que o fascismo pode brotar na democracia, por Wilson Gomes

Folha de S. Paulo

'A Personalidade Autoritária', de 1950, inaugurou uma agenda de pesquisa sobre as bases psicológicas do autoritarismo  

Este ano completa-se o 75º aniversário de "A Personalidade Autoritária", obra monumental publicada em 1950 por Adorno, Frenkel-Brunswik, Levinson e Sanford, que inaugurou uma agenda de pesquisa ainda atual sobre intolerância política e as bases psicológicas do autoritarismo.

Pela primeira vez, psicanálisepsicologia sociologia foram mobilizadas de modo integrado para enfrentar uma questão que, tanto no pós-guerra quanto hoje, se impõe com urgência: como sociedades democráticas podem gerar cidadãos predispostos a aderir a ideologias autoritárias.

A primeira grande inovação foi a virada copernicana que deslocou o centro da análise. Em vez de estudar a ideologia fascista —seus movimentos sociais, discursos, partidos e programas—, os autores voltaram-se aos indivíduos e às suas atitudes, isto é, às disposições subjetivas que estruturam o modo como as pessoas percebem o mundo social.

As atitudes autoritárias, sustentam, correlacionam-se de forma estável em um conjunto recorrente de sintomas psicológicos e sociais: conformismo, submissão à autoridade, intolerância à ambiguidade, agressividade contra grupos minoritários, rigidez moral e preconceito. Não é preciso militância aberta: basta que essas disposições, formadas desde a infância, estejam latentes.

Para compreender por que alguém tende a manter posições coerentes, é necessária uma estrutura subjetiva que garanta essa permanência relativa —a personalidade. Ela organiza predisposições e dá unidade ao comportamento, filtra os apelos da propaganda e reage às circunstâncias. Daí a diferença pessoal na suscetibilidade ao autoritarismo. Por outro lado, certas condições sociais e apelos externos podem ativar as disposições autoritárias, com risco real de uma tempestade perfeita.

A segunda inovação foi conceber o fascismo não como uma anomalia histórica confinada à Europa de Benito Mussolini ou Adolf Hitler, mas como uma expressão extrema de algo inscrito na vida social ordinária, inclusive em democracias estáveis. A pesquisa mostrou que determinados traços apareciam juntos de forma consistente, mesmo em indivíduos sem engajamento político explícito, como etnocentrismo, convencionalismo, superstição, submissão à autoridade do grupo de pertencimento e agressividade moralizada.

O valor da descoberta não estava em diagnosticar fascistas concretos, mas em revelar que existia um padrão de personalidade que podia ser mobilizado em condições políticas propícias. A ameaça não desapareceu com a derrota militar de 1945, mas permanecia viva em disposições latentes capazes de se atualizar a qualquer momento.

A terceira inovação consistiu no desenvolvimento de instrumentos metodológicos inéditos para captar esse padrão. O mais famoso foi um questionário para pesquisas de opinião, a "Escala F" (de fascismo), elaborada em sucessivas versões e combinado a entrevistas clínicas e testes projetivos. O questionário não detectava "fascistas" em sentido estrito, porque não havia grupo de controle de fascistas reais. O que oferecia era algo mais sutil e mais perturbador: a demonstração de que atitudes autoritárias aparentemente dispersas estavam, na verdade, fortemente correlacionadas e formavam uma constelação.

A escala mostrava como elas não se distribuíam ao acaso, mas se reuniam em torno de uma estrutura de personalidade que predispunha ao autoritarismo. A inovação decisiva foi transformar diagnósticos sociopolíticos em instrumentos replicáveis para medir a suscetibilidade de pessoas e grupos ao extremismo autoritário.

A escolha dos termos também foi significativa. Chamá-la de "Escala F" preservava a referência normativa ao fascismo como ameaça concreta, mas intitular o livro "A Personalidade Autoritária" ampliava o horizonte, indicando que não se tratava apenas de estudar o já derrotado fascismo europeu. O conceito de autoritarismo permitia generalizar a investigação e sugeria que regimes semelhantes poderiam emergir em qualquer sociedade.

Setenta e cinco anos depois, o alerta desses autores segue atual. Em todo o mundo, democracias enfrentam a ascensão da extrema direita e de novas formas de intolerância, como o avanço do autoritarismo progressista em nome da defesa de identidades. O livro de 1950 continua a lembrar que as democracias precisam se defender não só de inimigos externos, mas também dos impulsos autoritários que brotam de dentro da vida social e da própria personalidade dos cidadãos. Essa é a sua força duradoura: mostrar que o autoritarismo não é acidente histórico, mas risco permanente.

 

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