Folha de S. Paulo
'A Personalidade Autoritária', de 1950,
inaugurou uma agenda de pesquisa sobre as bases psicológicas do autoritarismo
Este ano completa-se o 75º aniversário de
"A Personalidade Autoritária", obra monumental publicada em 1950
por Adorno,
Frenkel-Brunswik, Levinson e Sanford, que inaugurou uma agenda de pesquisa
ainda atual sobre intolerância política e as bases psicológicas do
autoritarismo.
Pela primeira vez, psicanálise, psicologia e sociologia foram
mobilizadas de modo integrado para enfrentar uma questão que, tanto no
pós-guerra quanto hoje, se impõe com urgência: como sociedades democráticas
podem gerar cidadãos predispostos a aderir a ideologias autoritárias.
A primeira grande inovação foi a virada
copernicana que deslocou o centro da análise. Em vez de estudar a ideologia
fascista —seus movimentos sociais, discursos, partidos e programas—, os autores
voltaram-se aos indivíduos e às suas atitudes, isto é, às disposições
subjetivas que estruturam o modo como as pessoas percebem o mundo social.
As atitudes autoritárias, sustentam, correlacionam-se de forma estável em um conjunto recorrente de sintomas psicológicos e sociais: conformismo, submissão à autoridade, intolerância à ambiguidade, agressividade contra grupos minoritários, rigidez moral e preconceito. Não é preciso militância aberta: basta que essas disposições, formadas desde a infância, estejam latentes.
Para compreender por que alguém tende a
manter posições coerentes, é necessária uma estrutura subjetiva que garanta
essa permanência relativa —a personalidade. Ela organiza predisposições e dá
unidade ao comportamento, filtra os apelos da propaganda e reage às
circunstâncias. Daí a diferença pessoal na suscetibilidade ao autoritarismo.
Por outro lado, certas condições sociais e apelos externos podem ativar as
disposições autoritárias, com risco real de uma tempestade perfeita.
A segunda inovação foi conceber o fascismo
não como uma anomalia histórica confinada à Europa de Benito Mussolini ou Adolf Hitler,
mas como uma expressão extrema de algo inscrito na vida social ordinária,
inclusive em democracias estáveis. A pesquisa mostrou que determinados traços
apareciam juntos de forma consistente, mesmo em indivíduos sem engajamento
político explícito, como etnocentrismo, convencionalismo, superstição, submissão
à autoridade do grupo de pertencimento e agressividade moralizada.
O valor da descoberta não estava em
diagnosticar fascistas concretos, mas em revelar que existia um padrão de
personalidade que podia ser mobilizado em condições políticas propícias. A
ameaça não desapareceu com a derrota militar de 1945, mas permanecia viva em
disposições latentes capazes de se atualizar a qualquer momento.
A terceira inovação consistiu no
desenvolvimento de instrumentos metodológicos inéditos para captar esse padrão.
O mais famoso foi um questionário para pesquisas de opinião, a "Escala
F" (de fascismo), elaborada em sucessivas versões e combinado a
entrevistas clínicas e testes projetivos. O questionário não detectava
"fascistas" em sentido estrito, porque não havia grupo de controle de
fascistas reais. O que oferecia era algo mais sutil e mais perturbador: a
demonstração de que atitudes autoritárias aparentemente dispersas estavam, na
verdade, fortemente correlacionadas e formavam uma constelação.
A escala mostrava como elas não se
distribuíam ao acaso, mas se reuniam em torno de uma estrutura de personalidade
que predispunha ao autoritarismo. A inovação decisiva foi transformar
diagnósticos sociopolíticos em instrumentos replicáveis para medir a
suscetibilidade de pessoas e grupos ao extremismo autoritário.
A escolha dos termos também foi
significativa. Chamá-la de "Escala F" preservava a referência
normativa ao fascismo como ameaça concreta, mas intitular o livro "A
Personalidade Autoritária" ampliava o horizonte, indicando que não se tratava
apenas de estudar o já derrotado fascismo europeu. O conceito de autoritarismo
permitia generalizar a investigação e sugeria que regimes semelhantes poderiam
emergir em qualquer sociedade.
Setenta e cinco anos depois, o alerta desses
autores segue atual. Em todo o mundo, democracias enfrentam a ascensão da
extrema direita e de novas formas de intolerância, como o avanço do
autoritarismo progressista em nome da defesa de identidades. O livro de 1950
continua a lembrar que as democracias precisam se defender não só de inimigos
externos, mas também dos impulsos autoritários que brotam de dentro da vida
social e da própria personalidade dos cidadãos. Essa é a sua força duradoura:
mostrar que o autoritarismo não é acidente histórico, mas risco permanente.
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