quarta-feira, 20 de agosto de 2025

Museu do Trincheira tropical, por Cristovam Buarque

Correio Braziliense

Em Trincheira tropical, Ruy Castro deslumbra o leitor levando-o pelas ruas do Rio de Janeiro nos anos da Segunda Guerra Mundial. Nos conduz entre os personagens que participaram da vida política, militar e cultural daquele período

Muitos historiadores assumem a função de astrônomos do passado, observam, analisam, explicam, mas não guiam os leitores pelos caminhos da história. Ruy Castro não se limita a essa astronomia: ele nos conduz como um guia caminhando pelo passado, mostrando como era a sociedade no tempo que estuda. Em Trincheira tropical, deslumbra o leitor levando-o pelas ruas do Rio de Janeiro nos anos da Segunda Guerra Mundial. Mostra a cidade e o país no cenário naquele tempo, desvenda e conta os bastidores dos debates políticos e seus movimentos consequentes, ao mesmo tempo em que narra a vida que seguia. Ruy nos conduz entre os personagens que participaram da vida política, militar e cultural daquele período, por um fascinante passeio pelo passado. Não se arvora em astrônomo, mas em guia de museu vivo. Os livros de história nos trazem o passado, Trincheira tropical nos leva ao passado. Graças ao olhar do historiador e sua imensa bagagem de informações, assistimos como testemunhas aos fatos daqueles anos. Trincheira tropical é um ponto de observação a partir do qual podemos perceber e caminhar pelo passado em um momento decisivo da história mundial e nacional.

O Rio de Janeiro deveria organizar um roteiro turístico inspirado na obra, para que nossos alunos dos ensinos fundamental e médio conheçam a história. O leitor poderia percorrer lugares onde a história aconteceu: visitar endereços que ainda existem, entrar em edifícios que permanecem, olhar pelas janelas de onde os personagens de Ruy Castro contemplavam a cidade — muitas vezes com a intenção de mudar não apenas a paisagem política, mas também a urbana. Locais como o porto de onde partiram e voltaram os pracinhas; os palácios do Catete e da Guanabara, onde Getúlio tomava decisões; a casa onde Luís Carlos Prestes foi preso e a rua em que Olga Benário foi capturada; o endereço onde integralistas reuniam multidões para tentar implantar um fascismo tropical; o Cassino da Urca e o Hotel Copacabana Palace, onde brasileiros e estrangeiros se divertiam, espionavam e conspiravam — todos poderiam compor um guia turístico do Trincheira tropical.

Esse roteiro não daria conta da riqueza histórica que Ruy Castro construiu, mas inspiraria o visitante a se deslumbrar com a história viva e a perceber nuances da política brasileira. Sem emitir juízos de valor, apenas descrevendo, ele revela uma característica central de nossos políticos: a facilidade em mudar radicalmente de lado no espectro ideológico e programático. Como o jovem comunista radical Carlos Lacerda, que sabemos ter se transformado no grande tribuno da direita; Getúlio Vargas, de ditador de direita a condutor da democracia e pai dos trabalhadores e dos pobres; Dutra, de admirador de Mussolini a comandante dos pracinhas na derrota ao fascismo na Itália; Dom Hélder Câmara, San Tiago Dantas e tantos outros que, de jovens integralistas, se tornaram líderes democratas de esquerda.

Ruy Castro expõe o heroísmo, as dificuldades e as vitórias de nossos pracinhas no campo de batalha — e o descuido que receberam dos dirigentes nacionais logo após o desfile militar no retorno dos sobreviventes. Mostra como, para eleger Dutra, o governo moribundo de Getúlio relegou os oficiais comandantes da FEB, com receio de que o heroísmo militar os transformasse em líderes eleitorais. Passado o primeiro impacto da vitória, até mesmo a população os via mais como viajantes de volta da Itália do que como heróis que ajudaram na guerra a garantir a vitória da democracia sobre o fascismo. Cita como a multidão correu para o jipe conduzido pelo comandante Cordeiro de Farias, porque o motorista era o soldado Perácio, jogador do Flamengo. Mais do que o soldado no campo de batalha em Monte Castelo, o carioca vibrava pelo jogador no Maracanã.

Felizmente, nem todos os historiadores são astrônomos do passado. Alguns ainda são viajantes que nos guiam pela paisagem política, cultural e militar do passado, ajudando-nos a ver e a nos encantar com aqueles tempos — e a percebermos como eles moldaram a maneira como somos sem aprendermos ainda a usar a democracia para construir o futuro que desejamos e temos potencial para alcançar. Entre esses viajantes no tempo, Ruy Castro tem sido nosso grande historiador, especialmente pelo domínio da narrativa que seduz o leitor do início ao fim em uma obra cheia de informações, nuances e suspense: como se fosse um relato jornalístico de alta qualidade com a profundidade de um texto de grande historiador.

*Cristovam Buarque, professor emérito da Universidade de Brasília (UnB)

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