O Estado de S. Paulo
A Constituição de 1988 é verdadeiramente
fruto de uma anistia. Essa afirmação não está no plano da especulação política
Muito se tem falado, nos últimos tempos,
sobre anistia de crimes antidemocráticos nos mais variados tons. Às vezes, ela
é apresentada como elemento indispensável à pacificação do País. Outras, como
um deboche com a jovem democracia brasileira, a exigir a mais cabal rejeição.
Assim como toda a história do Direito Penal, sua trajetória é um pouco mais
complexa do que se costuma pensar.
A Constituição de 1988 é verdadeiramente fruto de uma anistia. Essa afirmação não está no plano da especulação política. O mesmo ato – a Emenda Constitucional (EC) 26/1985 – que convocou a Assembleia Nacional Constituinte concedeu “anistia a todos os servidores públicos civis da Administração direta e indireta e militares, punidos por atos de exceção, institucionais ou complementares”. Concedeu, “igualmente, anistia aos autores de crimes políticos ou conexos, e aos dirigentes e representantes de organizações sindicais e estudantis, bem como aos servidores civis ou empregados que hajam sido demitidos ou dispensados por motivação exclusivamente política, com base em outros diplomas legais”.
Para que não pairasse nenhuma dúvida
interpretativa, tanto nas difíceis circunstâncias de então, como em tempos
futuros, a EC 26/1985 explicitou que “a anistia abrange os que foram punidos ou
processados pelos atos imputáveis previstos no caput deste artigo, praticados
no período compreendido entre 2 de setembro de 1961 e 15 de agosto de 1979”, o
mesmo lapso temporal da Lei 6.683/1979. De forma solene, reconheceu-se a Lei da
Anistia como uma das condições políticas e jurídicas para a instauração da
Assembleia Nacional Constituinte – ou seja, para a volta da democracia.
No Ato das Disposições Constitucionais
Transitórias, a Constituição de 1988 recepcionou explicitamente essa anistia na
nova ordem democrática que então se inaugurava. Concedeu “anistia aos que, no
período de 18 de setembro de 1946 até a data da promulgação da Constituição,
foram atingidos, em decorrência de motivação exclusivamente política, por atos
de exceção, institucionais ou complementares, aos que foram abrangidos pelo
Decreto Legislativo 18/1961, e aos atingidos pelo Decreto-Lei 864/1969”.
Nada disso, por óbvio, significa banalizar o
instrumento jurídico-político da anistia, como se estivéssemos diante de um
fármaco universal para toda crise política, como se ela fosse uma fórmula
mágica de pacificação social. É o exato contrário: a anistia é o resultado de um
complexo processo de negociação, no qual ambas as partes cedem, para se chegar
a um futuro comum compartilhado e desejado. Segundo a Constituição, a
competência para conceder anistia é do Congresso. Ao mesmo tempo, ela
restringiu esse poder estabelecendo, como crimes insuscetíveis de graça ou de
anistia, “a prática da tortura, o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas
afins, o terrorismo e os definidos como crimes hediondos, por eles respondendo
os mandantes, os executores e os que, podendo evitá-los, se omitirem”. O
legislador constituinte era consciente, portanto, de que o instrumento da
anistia deveria ser usado com extremo cuidado.
Uma vez mais se nota esta mesma dinâmica
envolvendo a anistia: trata-se de uma medida importante, a merecer profundo respeito,
e não banalização. No caso concreto debatido no País, o Supremo Tribunal
Federal (STF) parece ter dificuldades em aceitar a anistia de crimes contra a
democracia, sob a alegação de que haveria limitação constitucional implícita à
concessão de benefício, como também seriam o indulto ou o perdão judicial. Mas,
diga-se: não parece haver proibição explícita para tanto. E isso por uma
simples razão: foi o Congresso quem criou e estabeleceu os tipos penais contra
a ordem democrática. Poderia não tê-los criado, poderia tê-los criado sob
outras modalidades e condições, poderia alterá-los ou mesmo revogá-los. Não
parece cabível restringir tal faculdade.
Para escândalo ou desgosto de muitos adeptos
de um Direito Penal máximo, a regular todas as esferas da vida social e
econômica, não existe um mandamento constitucional fixando que a defesa da
democracia seja feita necessariamente pela via penal. Tal caminho foi uma
escolha, sancionada pelo chefe do Executivo federal, do Legislativo que, se e
quando desejar, pode perfeitamente alterá-la ou mesmo, revogá-la.
Reiteramos. Isso não significa que a
pretensão de anistia das pessoas condenadas pelo STF por crimes contra a
democracia – pretensão esta, digase de passagem, compreensível em qualquer
pessoa condenada criminalmente – deva ser acolhida, e menos ainda que possa ser
positiva para o País ou trazer alguma pacificação. Tal juízo deve, sempre, ser
de ordem política, e não jurídica.
Ao prever as condições e limites da anistia,
a Constituição de 1988 reconheceu nela sua própria condição de existência – não
como impunidade, mas como paz dialogada. É sob essa lembrança que deveria ser
pautado o tema. E é de se olhar, portanto, com maturidade a história nacional e
suas diferentes anistias. Também para que não se destruam os alicerces de nossa
jovem democracia. •
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