quarta-feira, 17 de setembro de 2025

A anistia e a Constituição de 1988. Por Renato de Mello Jorge Silveira e Nicolau da Rocha Cavalcanti

O Estado de S. Paulo

A Constituição de 1988 é verdadeiramente fruto de uma anistia. Essa afirmação não está no plano da especulação política

Muito se tem falado, nos últimos tempos, sobre anistia de crimes antidemocráticos nos mais variados tons. Às vezes, ela é apresentada como elemento indispensável à pacificação do País. Outras, como um deboche com a jovem democracia brasileira, a exigir a mais cabal rejeição. Assim como toda a história do Direito Penal, sua trajetória é um pouco mais complexa do que se costuma pensar.

A Constituição de 1988 é verdadeiramente fruto de uma anistia. Essa afirmação não está no plano da especulação política. O mesmo ato – a Emenda Constitucional (EC) 26/1985 – que convocou a Assembleia Nacional Constituinte concedeu “anistia a todos os servidores públicos civis da Administração direta e indireta e militares, punidos por atos de exceção, institucionais ou complementares”. Concedeu, “igualmente, anistia aos autores de crimes políticos ou conexos, e aos dirigentes e representantes de organizações sindicais e estudantis, bem como aos servidores civis ou empregados que hajam sido demitidos ou dispensados por motivação exclusivamente política, com base em outros diplomas legais”.

Para que não pairasse nenhuma dúvida interpretativa, tanto nas difíceis circunstâncias de então, como em tempos futuros, a EC 26/1985 explicitou que “a anistia abrange os que foram punidos ou processados pelos atos imputáveis previstos no caput deste artigo, praticados no período compreendido entre 2 de setembro de 1961 e 15 de agosto de 1979”, o mesmo lapso temporal da Lei 6.683/1979. De forma solene, reconheceu-se a Lei da Anistia como uma das condições políticas e jurídicas para a instauração da Assembleia Nacional Constituinte – ou seja, para a volta da democracia.

No Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, a Constituição de 1988 recepcionou explicitamente essa anistia na nova ordem democrática que então se inaugurava. Concedeu “anistia aos que, no período de 18 de setembro de 1946 até a data da promulgação da Constituição, foram atingidos, em decorrência de motivação exclusivamente política, por atos de exceção, institucionais ou complementares, aos que foram abrangidos pelo Decreto Legislativo 18/1961, e aos atingidos pelo Decreto-Lei 864/1969”.

Nada disso, por óbvio, significa banalizar o instrumento jurídico-político da anistia, como se estivéssemos diante de um fármaco universal para toda crise política, como se ela fosse uma fórmula mágica de pacificação social. É o exato contrário: a anistia é o resultado de um complexo processo de negociação, no qual ambas as partes cedem, para se chegar a um futuro comum compartilhado e desejado. Segundo a Constituição, a competência para conceder anistia é do Congresso. Ao mesmo tempo, ela restringiu esse poder estabelecendo, como crimes insuscetíveis de graça ou de anistia, “a prática da tortura, o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, o terrorismo e os definidos como crimes hediondos, por eles respondendo os mandantes, os executores e os que, podendo evitá-los, se omitirem”. O legislador constituinte era consciente, portanto, de que o instrumento da anistia deveria ser usado com extremo cuidado.

Uma vez mais se nota esta mesma dinâmica envolvendo a anistia: trata-se de uma medida importante, a merecer profundo respeito, e não banalização. No caso concreto debatido no País, o Supremo Tribunal Federal (STF) parece ter dificuldades em aceitar a anistia de crimes contra a democracia, sob a alegação de que haveria limitação constitucional implícita à concessão de benefício, como também seriam o indulto ou o perdão judicial. Mas, diga-se: não parece haver proibição explícita para tanto. E isso por uma simples razão: foi o Congresso quem criou e estabeleceu os tipos penais contra a ordem democrática. Poderia não tê-los criado, poderia tê-los criado sob outras modalidades e condições, poderia alterá-los ou mesmo revogá-los. Não parece cabível restringir tal faculdade.

Para escândalo ou desgosto de muitos adeptos de um Direito Penal máximo, a regular todas as esferas da vida social e econômica, não existe um mandamento constitucional fixando que a defesa da democracia seja feita necessariamente pela via penal. Tal caminho foi uma escolha, sancionada pelo chefe do Executivo federal, do Legislativo que, se e quando desejar, pode perfeitamente alterá-la ou mesmo, revogá-la.

Reiteramos. Isso não significa que a pretensão de anistia das pessoas condenadas pelo STF por crimes contra a democracia – pretensão esta, digase de passagem, compreensível em qualquer pessoa condenada criminalmente – deva ser acolhida, e menos ainda que possa ser positiva para o País ou trazer alguma pacificação. Tal juízo deve, sempre, ser de ordem política, e não jurídica.

Ao prever as condições e limites da anistia, a Constituição de 1988 reconheceu nela sua própria condição de existência – não como impunidade, mas como paz dialogada. É sob essa lembrança que deveria ser pautado o tema. E é de se olhar, portanto, com maturidade a história nacional e suas diferentes anistias. Também para que não se destruam os alicerces de nossa jovem democracia. •

 

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