Valor Econômico
O problema maior está no silêncio ou
aquiescência de boa parte da sociedade frente ao golpismo continuado e
travestido de anistia
Pela primeira vez na história, o Brasil vai
punir golpistas. Esse é o grande saldo positivo do processo envolvendo o
ex-presidente Jair Bolsonaro e seus comparsas. É preciso comemorar porque a
democracia sempre perdeu para os autoritários de plantão. Porém, como alguns
dos ministros do STF avisaram em seus votos, o dia seguinte não será fácil,
pois o golpismo ainda está forte na sociedade brasileira, com a novidade de
agora ter apoio internacional. Se os democratas do país não continuarem na
batalha contra os antidemocratas, inclusive os que vestem pele de cordeiro, a
vitória de hoje poderá se reverter num pesadelo futuro.
É inegável que a democracia brasileira venceu o seu maior teste desde a redemocratização ao evitar o golpe bolsonarista e punir exemplarmente os golpistas. As dúvidas giram em torno de quem foram os responsáveis por essa vitória. As instituições tiveram um papel central, porque tem características que dificultam a concentração autocrática do poder. O sucesso do presidencialismo à brasileira, no entanto, dependeu de atores que souberam ativar as armas institucionais por meio de pressões sociais e escolhas em prol da democracia.
Os partidos de oposição a Bolsonaro, os
governadores oposicionistas, a maioria dos ministros do STF, setores sociais
que construíram uma ampla aliança pluralista em prol da defesa da democracia e
o apoio externo dos Estados Unidos e da Europa foram essenciais para evitar o
sucesso do golpismo. Com o término do processo contra Bolsonaro e seus
comparsas, pode-se ter a falsa ilusão de que o jogo acabou. Muito pelo
contrário, a capacidade de o bolsonarismo mobilizar políticos e eleitores ainda
é muito forte, a ponto de ter dividido o Centrão e praticamente paralisado o
processo legislativo nos últimos dois meses.
A proposta inicial de anistia dos líderes do
PL é um tapa na cara em tudo o que se obteve no combate ao golpismo nos últimos
três anos. É tão escandalosa que até o Centrão se recolheu aos seus aposentos
após a opinião pública conhecer o documento. Não por acaso, nesta semana a
Câmara federal só funcionou remotamente, para que todos recalculem sua rota,
porque a infâmia apresentada pelo deputado Sóstenes Cavalcante é um plano
pornográfico que desnuda o autoritarismo e o sentimento de total impunidade que
moveu seus autores.
Só que a ideia de anistia ainda não morreu.
Os bolsonaristas querem trocar a salvação dos seus, especialmente da família
Bolsonaro, pela PEC da Impunidade, que salvaria toda a classe política de
qualquer investigação independente dos órgãos de controle e da Polícia Federal.
Não será fácil viabilizar essa dobradinha entre golpistas e corruptos. A
opinião pública e uma parcela da classe política vão denunciar esse atentado
contra a democracia.
Além da pressão social, três barreiras
políticas dificultam o plano bolsonarista. Primeiro, o presidente do Senado e
várias das lideranças da Casa não têm medo do bolsonarismo e são independentes
o suficiente para evitar a infâmia legislativa apresentada por Sóstenes. Mas
muitos senadores pretendem apresentar uma redução de penas, muito mais destinada
aos bagrinhos do golpe do que a seus líderes. Essa proposta pode ganhar um aval
implícito da maioria do STF.
A questão é que essa solução não agrada à
extrema direita, que vai lutar até o fim pela decretação da impunidade total do
governo Bolsonaro e de sua continuação golpista nos últimos três anos - com
direito a tramar a quebra da democracia brasileira junto com o presidente
Donald Trump. Como todo radicalismo autoritário, os bolsonaristas apenas
aceitam a vitória completa, e rejeitam seguir as regras do jogo quando estas
não lhes favorecem. Ou seja, o barulho antidemocrático em favor da anistia
tende a permanecer por todo o ciclo eleitoral.
Caso seja aprovada, o que é bastante difícil,
a anistia ainda enfrentaria o provável veto do presidente e do Supremo Tribunal
Federal. No primeiro caso, Lula poderia ganhar muito politicamente com a
rejeição, especialmente se associar o projeto de libertação dos golpistas com a
interferência americana contra a soberania brasileira e ainda com a impunidade.
Neste sentido, uma parcela do Centrão, por medo ou por perspectiva de poder,
aceitou inadvertidamente seguir a liderança bolsonarista, numa empreitada com
mais chances de perder do que ganhar força política. Para quem sempre foi
mestre em seus cálculos políticos, tal escolha é um erro incompreensível, a não
ser que estejam igualmente com temor da Justiça.
Aparentemente, outras lideranças mais ao
centro perceberam o equívoco do casamento incondicional com a proposta
extremista do bolsonarismo, e já não querem pagar o custo político-eleitoral do
radicalismo. O silêncio ensurdecedor de várias lideranças emedebistas e,
sobretudo, de Kassab, o mestre dos magos da política brasileira, revela que os
mais profissionais da classe política perceberam o equívoco dessa aposta. Daí
que o discurso da anistia pode se tornar basicamente ou um mote eleitoral da
extrema direita, como forma de buscar votos dos eleitores bolsonaristas mais
fiéis e dos que seguem a lógica antissistema, ou instrumento para alimentar o
plano B da solução golpista caso percam nas urnas.
O último obstáculo à anistia é o próprio
Supremo Tribunal Federal. Ali não há chances para o golpismo travestido de
justiça. O problema é que se esse projeto infame tiver que ser derrotado no
STF, num novo veto sobre decisões congressuais, o desgaste político da
instituição e de alguns de seus ministros vai crescer ainda mais.
Vale ressaltar aqui: é verdade que por vezes
há exageros no exercício do poder do Supremo ou de alguns de seus membros,
porém, muito mais relevante é dizer, em voz alta, que a defesa pública da
democracia está muito concentrada em ministros do Supremo, com um silêncio ou
uma timidez enorme dos partidos políticos, de lideranças políticas como os
principais governadores e, especialmente, do Congresso Nacional.
O Brasil só voltou à democracia porque
figuras como Ulysses Guimarães, Franco Montoro, Lula, Fernando Henrique,
Tancredo Neves, Mário Covas, entre outros, não se calaram quando membros do
regime militar tentaram evitar a continuidade da abertura e da transição
política.
Quem fica mudo perante propostas que
beneficiam o golpismo poderá perder a voz no futuro quando um autocrata, como
Bolsonaro e seus comparsas, chegar ao poder. Quando denunciam as urnas
eletrônicas, os bolsonaristas, no fundo, descreditam o voto, porque imaginam
que suas mobilizações de multidões substituem o processo eleitoral. E os
políticos do sistema, da centro-direita à esquerda, somente são maioria frente
ao bolsonarismo porque o eleitorado ainda é livre para participar e definir
seus representantes e governantes.
Pior do que o silencio é compactuar com o
golpismo, agora numa versão não apenas de cordeiro, mas de lideranças que
gritam pelo golpe frente à turba. Os governadores dos três estados mais
populosos do país foram às ruas defender propostas antidemocráticas em nome de
sua fidelidade a Bolsonaro, embora todos saibamos que o ex-presidente nunca
aceitará ser liderado por eles e nem será fiel se precisar traí-los para
manter-se no comando.
Para quem tem citado a trajetória histórica
brasileira com o intuito de mostrar sua sagacidade política, cabe recordar: os
governadores de São Paulo, Minas Gerais e, na época, Guanabara apoiaram o golpe
de 1964, sendo que o principal líder entre eles, Carlos Lacerda, depois foi
cassado pelos militares quando sua serventia já não valia mais nada.
Moral da história: quem defende cegamente a
anistia de um autocrata legítimo, como é Bolsonaro, poderá ter o mesmo destino
de Lacerda, que era igualmente considerado moderado pela classe média brasileira.
O governador Tarcísio de Freitas, que deveria ouvir mais seu antigo conselheiro
Kassab, perdeu não só o caminho da moderação: ele saiu do campo dos democratas.
Isso é muito grave quando se trata do governador do estado mais rico e populoso
da Federação.
O risco autoritário permanece, ademais,
porque existe agora um fator internacional: a parceria entre bolsonaristas e
trumpistas. O presidente Trump e seus aliados, como as big techs, vão dar
trabalho. O problema maior, entretanto, está em casa, mais particularmente no
silêncio ou aquiescência de boa parte da sociedade frente ao golpismo
continuado e travestido de anistia. E não falo aqui do terço certamente
antissistema do eleitorado, com parcela majoritária dele sendo bolsonarista. O
que incomoda é a incapacidade de os outros dois terços vocalizarem seu grito a
favor da democracia e contra qualquer forma de autoritarismo.
Alvissareiramente, nem tudo é apatia: em 15
de setembro comemora-se o Dia Internacional da Democracia e o movimento
suprapartidário Direitos Já vai organizar, em São Paulo, um evento no Teatro
Tuca para dizer não ao autoritarismo que ainda nos persegue. Gente de
diferentes colorações políticas e de diversos setores sociais vão estar lá para
dizer que anistia é golpe e que o Brasil decide seu destino por conta própria,
nas urnas e seguindo a Constituição. Espero que esse evento anime outros grupos
a organizar mais jornadas em defesa das instituições democráticas brasileiras,
para que os ministros do STF não fiquem sozinhos na luta contra o golpismo.
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