sexta-feira, 5 de setembro de 2025

A escravidão, de novo. Por José de Souza Martins

Valor Econômico

O sistema econômico inventou estratégias que agregassem ao lucro o lucro extraordinário derivado da sobre-exploração do trabalho

Três diferentes notícias da semana passada lançam luzes sobre a problemática e persistente questão da escravidão pós-escravista no Brasil.

Uma relativa a casos nos Lençóis Maranhenses. Um deles, envolvendo quatro pescadores e mar aberto. Outro, envolvendo 76 trabalhadores na extração de palha de carnaúba. O resgate foi feito por auditores do Ministério Público do Trabalho, com apoio da Polícia Federal e da Defensoria Pública da União.

No Rio Grande do Sul, uma idosa que trabalhou na casa de uma família desde os 4 anos de idade teve sua situação reconhecida pela Justiça como de cativeiro. Que reconheceu também a relação de exploração, por meio da integração na família, como relação parental. Marido e mulher, já falecidos, a quem ela servira desde sempre, foram reconhecidos como pai e mãe.

Mandou a Justiça que essa paternidade putativa fosse anotada em seu registro de nascimento. Foram-lhe reconhecidos direitos sucessórios à casa em que sempre vivera e de que se recusava a sair.

Caso mais complicado é o da Fazenda Vale do Rio Cristalino, da Volkswagen, no Pará. Tinha a área de 100 mil hectares. Essa fazenda foi vendida a outro grupo econômico. O caso transitou na Justiça como pendência da empresa alemã, que foi condenada pela Justiça do Trabalho de Redenção a pagar R$ 165 milhões por escravidão, nos anos 1970 e 1980, na ditadura militar. Terá, ainda, que publicar um pedido de desculpa às vítimas em revistas e jornais. A empresa recorrerá.

A ocorrência envolveu cerca de 600 trabalhadores. Eram empregados na derrubada da mata e na roçagem para formação e manutenção de pastagens. Sem vínculo empregatício, arregimentados como terceirizados por empreiteiros.

A Vale do Rio Cristalino destinava-se à criação de gado, com infraestrutura industrial de abate, refrigeração e envio do produto por avião para a Alemanha. Aquele país podia receber carne fresca como se tivesse uma fazenda amazônica de pecuária em seu próprio território.

A Fazenda Vale do Rio Cristalino representava uma revolução peculiar, ainda que esdrúxula, no capitalismo. Fazia-o ultramoderno e ultra-atrasado ao mesmo tempo. O atraso num momento do processo de produção como fator de acumulação extraordinária de capital. Uma característica da economia da ditadura, a do crescimento econômico sem desenvolvimento social e com repressão laboral. Uma funcionalização do que na teoria de Max Weber aparece como irracionalidade econômica anticapitalista.

Na Vale do Rio Cristalino, já estávamos vivendo uma revolução econômica baseada na injustiça social extrema e na inclusão perversa dos trabalhadores no processo de criação da riqueza e de reprodução ampliada do capital. O trabalhador divorciado da condição de membro da sociedade capitalista. Convertia-se em vítima descartável e em problema social. Na Amazônia nascia uma nova forma de capitalismo, diferente do que a teoria preconizava e interpretava.

No século XIX, uma das teorias do desenvolvimento capitalista reconhecia que a renda da terra era anômala no empreendimento econômico moderno. A terra, bem finito e não reprodutível, era anticapitalista.

A empresa moderna, para usar a terra, tinha que pagar renda, aluguel, ao proprietário de terra, um parasita do lucro. Uma dedução se o próprio capitalista não fosse o proprietário da terra.

Aqui, o general Golbery do Couto e Silva propôs reformas jurídicas e a criação de uma estrutura de direito que modernizava o direito fundiário e abria espaço para que o empresário capitalista se tornasse também proprietário de terra. E unificasse lucro e renda. Era o fundamento de uma economia necessariamente antidemocrática e carente de autoritarismo. O capitalista gerado pela economia da ditadura tornou-se um ser duplo, capitalista e anticapitalista ao mesmo tempo.

Para viabilizar esse estranho capitalismo divorciado de racionalidade, o sistema econômico inventou estratégias que agregassem ao lucro o lucro extraordinário derivado da sobre-exploração do trabalho. Isto é, o trabalho escravo legalizado sob a forma de trabalho terceirizado. O empregador sem responsabilidade nas condições adversas de trabalho do trabalhador.

Mas assim como a renda da terra metamorfoseia-se em lucro, em renda não paga ao proprietário quando é ele o próprio capitalista, o valor criado pelo trabalho do escravo converte-se em capital e perdura como tal mesmo após a cessação da relação de cativeiro. Incorpora-se ao capital constante como trabalho não pago.

O Brasil é o laboratório da reinvenção do capitalismo. Tem sido, também, o laboratório do desenvolvimento da teoria que o explica, mas não tem produzido os leitores que a compreendam e difundam. Nem na universidade.

 

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