Valor Econômico
O sistema econômico inventou estratégias que
agregassem ao lucro o lucro extraordinário derivado da sobre-exploração do
trabalho
Três diferentes notícias da semana passada
lançam luzes sobre a problemática e persistente questão da escravidão
pós-escravista no Brasil.
Uma relativa a casos nos Lençóis Maranhenses. Um deles, envolvendo quatro pescadores e mar aberto. Outro, envolvendo 76 trabalhadores na extração de palha de carnaúba. O resgate foi feito por auditores do Ministério Público do Trabalho, com apoio da Polícia Federal e da Defensoria Pública da União.
No Rio Grande do Sul, uma idosa que trabalhou
na casa de uma família desde os 4 anos de idade teve sua situação reconhecida
pela Justiça como de cativeiro. Que reconheceu também a relação de exploração,
por meio da integração na família, como relação parental. Marido e mulher, já
falecidos, a quem ela servira desde sempre, foram reconhecidos como pai e mãe.
Mandou a Justiça que essa paternidade
putativa fosse anotada em seu registro de nascimento. Foram-lhe reconhecidos
direitos sucessórios à casa em que sempre vivera e de que se recusava a sair.
Caso mais complicado é o da Fazenda Vale do
Rio Cristalino, da Volkswagen, no Pará. Tinha a área de 100 mil hectares. Essa
fazenda foi vendida a outro grupo econômico. O caso transitou na Justiça como
pendência da empresa alemã, que foi condenada pela Justiça do Trabalho de
Redenção a pagar R$ 165 milhões por escravidão, nos anos 1970 e 1980, na
ditadura militar. Terá, ainda, que publicar um pedido de desculpa às vítimas em
revistas e jornais. A empresa recorrerá.
A ocorrência envolveu cerca de 600
trabalhadores. Eram empregados na derrubada da mata e na roçagem para formação
e manutenção de pastagens. Sem vínculo empregatício, arregimentados como
terceirizados por empreiteiros.
A Vale do Rio Cristalino destinava-se à
criação de gado, com infraestrutura industrial de abate, refrigeração e envio
do produto por avião para a Alemanha. Aquele país podia receber carne fresca
como se tivesse uma fazenda amazônica de pecuária em seu próprio território.
A Fazenda Vale do Rio Cristalino representava
uma revolução peculiar, ainda que esdrúxula, no capitalismo. Fazia-o
ultramoderno e ultra-atrasado ao mesmo tempo. O atraso num momento do processo
de produção como fator de acumulação extraordinária de capital. Uma
característica da economia da ditadura, a do crescimento econômico sem
desenvolvimento social e com repressão laboral. Uma funcionalização do que na
teoria de Max Weber aparece como irracionalidade econômica anticapitalista.
Na Vale do Rio Cristalino, já estávamos
vivendo uma revolução econômica baseada na injustiça social extrema e na
inclusão perversa dos trabalhadores no processo de criação da riqueza e de
reprodução ampliada do capital. O trabalhador divorciado da condição de membro
da sociedade capitalista. Convertia-se em vítima descartável e em problema
social. Na Amazônia nascia uma nova forma de capitalismo, diferente do que a
teoria preconizava e interpretava.
No século XIX, uma das teorias do
desenvolvimento capitalista reconhecia que a renda da terra era anômala no
empreendimento econômico moderno. A terra, bem finito e não reprodutível, era
anticapitalista.
A empresa moderna, para usar a terra, tinha
que pagar renda, aluguel, ao proprietário de terra, um parasita do lucro. Uma
dedução se o próprio capitalista não fosse o proprietário da terra.
Aqui, o general Golbery do Couto e Silva
propôs reformas jurídicas e a criação de uma estrutura de direito que
modernizava o direito fundiário e abria espaço para que o empresário capitalista
se tornasse também proprietário de terra. E unificasse lucro e renda. Era o
fundamento de uma economia necessariamente antidemocrática e carente de
autoritarismo. O capitalista gerado pela economia da ditadura tornou-se um ser
duplo, capitalista e anticapitalista ao mesmo tempo.
Para viabilizar esse estranho capitalismo
divorciado de racionalidade, o sistema econômico inventou estratégias que
agregassem ao lucro o lucro extraordinário derivado da sobre-exploração do
trabalho. Isto é, o trabalho escravo legalizado sob a forma de trabalho
terceirizado. O empregador sem responsabilidade nas condições adversas de
trabalho do trabalhador.
Mas assim como a renda da terra
metamorfoseia-se em lucro, em renda não paga ao proprietário quando é ele o
próprio capitalista, o valor criado pelo trabalho do escravo converte-se em
capital e perdura como tal mesmo após a cessação da relação de cativeiro.
Incorpora-se ao capital constante como trabalho não pago.
O Brasil é o laboratório da reinvenção do
capitalismo. Tem sido, também, o laboratório do desenvolvimento da teoria que o
explica, mas não tem produzido os leitores que a compreendam e difundam. Nem na
universidade.
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