Essas recentes agressões à dignidade nacional (outras estão por vir, e virão,
se não retomarmos o árduo e inadiável trabalho de organização social) dão a
justa medida do rés-do-chão político e ético a que pode cair um poder
autorreferente, apartado do mundo real e carcomido por interesses que pouco
dizem respeito ao interesse público, às necessidades e aos sonhos do país. Caso
que é o retrato da Câmara dos Deputados nas últimas legislaturas — não dela
toda, decerto, mas da maioria de seus membros: algo como
3/5 do colegiado.
O ajuntamento que podemos, sem muito exagero, denominar “sindicato do crime”
conta hoje, portanto, com um quórum de maioria absoluta na Câmara, o que lhe
permite emendar a Constituição, abrir processo de impeachment contra o
presidente da República e aprovar ou vetar o que seja (quem pode
mais, pode menos), se não for contido pela casa revisora, o
Senado Federal, no qual tampouco o republicanismo pode ser dado como
cláusula pétrea.
É denotativo o fato de, em um coletivo de 511 deputados, apenas uma
minoria (cento e poucos parlamentares) tenha enfrentado, em nome
da dignidade, a afronta do rolo compressor do atraso associado à iniquidade: o
encontro do Centrão com a extrema-direita.
Sob qualquer ponto de vista, é infame a aprovação, feita a toque de caixa, da
urgência da proposta que chantageia a Nação com a promessa de
impunidade dos criminosos que, por mais de quatro anos, no poder e dele se
servindo, investiram contra a democracia, atentaram e ainda atentam contra o
país, pondo-se gostosamente a serviço do atual inquilino da Casa Branca, que
nos agride e nos insulta, ao tempo em que insulta a humanidade, abraçando,
financiando e amparando política e militarmente o genocídio dos palestinos.
Caso aprovada, a anistia “ampla, geral e irrestrita”, como jamais vista,
decretará a impunidade de todos os golpistas — desde o chefe da
organização criminosa (qualificação que devemos ao STF) e seus estrelados
cúmplices até os desordeiros do dia 8 de janeiro de 2023.
O Projeto de Lei nº 2162/2023 é sórdido, mas há pouco acaso na história: ele
responde ao avanço da direita na política e na sociedade. Não por acaso é
firmado pelo pastor-deputado Marcelo Crivella, hoje bem conhecido do eleitorado
fluminense, e seu relator, escolhido a dedo pelo presidente da Câmara, é o
notório deputado Paulinho da Força, candidato a beneficiário da PEC da
Blindagem de parlamentares flagrados em delito, sejam eles “simplesmente”
corruptos contumazes e assaltantes do poder público, sejam criminosos
políticos, como sempre foi e é Jair M. Bolsonaro, e como o é, acintosamente,
seu filho 03 (presentemente nos EUA em remunerada vilegiatura contra os
interesses do Brasil), ou mesmo criminosos comuns.
O presidente Hugo Motta, articulador da PEC da Blindagem (ou
da “bandidagem”, numa acepção mais esclarecedora, que rapidamente se
difundiu) e do PL da Anistia, revela-se aplicado discípulo de Eduardo Cunha e
Arthur Lira — este, ao que se diz, seu criador e mentor.
Nesse mister divorciado de respeito ao cargo, Motta se esmerou em negociações
pouco ortodoxas, como aquelas que foram reveladas por Maria Cristina
Fernandes, articulista de primeira grandeza que lustra o diário da Faria Lima.
Na edição do dia 17/09 do Valor, ela escreve com todas as letras:
“Blindagem escancara a política, sem intermediação, ao crime”.
Não é ocioso lembrar que a iniciativa da blindagem é levada a cabo poucos dias
após o MP de São Paulo haver revelado )as relações nada canônicas do
crime organizado — PCC e adjacências — com o mercado financeiro e sua
infiltração nas estruturas do Estado, para além do notório acumpliciamento com
unidades da segurança pública, mais notadamente nos estados de São Paulo e Rio
de Janeiro (onde, há poucos dias, foi preso um deputado estadual, integrante da
cúpula do crime organizado).
Maria Cristina narra o périplo do presidente Hugo e de líderes
do Centrão em busca de apoio à blindagem. O que ela revela não é
chamado de chantagem, mas os fatos não carecem de interpretação. Assim, o
presidente da Câmara, na segunda-feira, 15/09 (véspera da primeira votação),
teria procurado em seu gabinete o presidente Lula propondo um “acordo”: o
governo apoiaria a PEC da Blindagem, e a coalizão dominante na Casa aprovaria
uma anistia “restrita à redução das penas” (mais adiante ver-se-á como
Paulinho da Força, na qualidade de procurador de Motta, entrará em cena).
Mas as negociações não terminavam aí, porque os líderes do Centrão, ainda
nesse episódio, fizeram chegar a ministros do STF que a contrapartida deles
para a aceitação da constitucionalidade da PEC seria a garantia de que,
doravante, aqueles juízes não seriam mais incomodados com ameaças de
impeachment. A proposta trazia ainda um bônus: a promessa de o Centrão negociar
com o deputado Eduardo Bolsonaro, agente da extrema-direita junto à Casa
Branca, a garantia de que as penas da lei Magnitsky, aplicadas
por Trump contra Alexandre de Moraes, não se estenderiam aos demais
membros da Corte.
Poderiam ficar tranquilos, dizia a súcia.
A blindagem, logo nos primeiros momentos, foi mal-recebida tanto no Senado,
onde não deverá gozar de livre curso, quanto na sociedade. A grande imprensa
não gostou (o que não é irrelevante) e as agências de pesquisa de opinião
registram a rejeição da iniciativa pela manifestação majoritária da população.
Não é esse o curso previsto para o PL da Anistia, tão ou mais
inaceitável técnica, política e moralmente, embora nossa história
republicana ensine, e o faz com toda a clareza, que a impunidade é a escola e a
semente do golpismo.
O projeto, porém, não conta com oposição clara nem enfrenta, pelo que se
pode aferir, a necessária articulação do governo, limitado em seus
movimentos por uma correlação de forças claramente desfavorável, que não logra
alterar. De outra parte, até aqui, a ameaça não despertou a indignação popular,
pelo menos no nível que gostaríamos de estar festejando.
A ingente defesa da independência e da soberania nacionais, justamente
hegemônica no campo progressista, parece fazer sombra cerrada ao combate à
insólita anistia, a que se somam as conhecidas dificuldades que o movimento
progressista tem, já de algum tempo, nas suas tentativas de mobilização. Elas
decorrem, como todo fenômeno social, de mil indicadores, todos razoavelmente
rastreados, como a atonia dos partidos do campo da esquerda, o recesso das
entidades de classe de um modo geral e a crise do trabalho, de que decorre a
crise do sindicalismo, que não nos cansamos de registrar, sem condições, porém,
de indicar alternativas.
Minoria no Congresso, sem voz na grande imprensa, desarticulados nossos
tradicionais grupos de pressão, somos frequentemente estimulados a procurar
alternativas na resistência. O caminho, principalmente em face de derrotas
parlamentares, ou em sua iminência, é o socorro ao apelo judicial, em princípio
o recurso justo de toda minoria. Mas não se pode crer que todas as tarefas de
defesa da democracia — cujo ponto capital, hoje, aqui, reside na condenação dos
golpistas — sejam atribuição pura e exclusiva do poder judiciário, por natureza
frágil e sem defesa objetiva, principalmente quando carece de sustentação na
mobilização popular.
A sociedade parece não apoiar o STF não na extensão da
importância da causa. Imóvel, não acena, pelo menos ainda não acena, com
maior gesto de solidariedade, e as ruas, que não reclamaram os julgamentos nem
festejaram as condenações, hesitam na exigência do cumprimento das penas,
ameaçado interna (os últimos movimentos na Câmara) e internacionalmente
(dispensável relembrar as promessas de retaliação contínua da Casa Branca).
Nesse vácuo caminha o torpedo da anistia, em suas diversas versões.
Às forças progressistas, no mais amplo espectro, cumpre, organizadas, a
retomada das ruas deixadas vazias para os passeios do fascismo, mobilizado
como jamais esteve e ouvido como nunca, pelas grandes massas. Nesse sentido,
são alvissareiras as convocações (pelas frentes Brasil Popular e Povo sem Medo,
entre outros) para manifestações, já para o domingo, 21/09, em quase
todo o país, contra a PEC da Bandidagem e a anistia aos
golpistas.
A praça só é do povo quando ele a ocupa. E quando a ocupa, quase sempre
faz história.
O significado simbólico do julgamento do STF precisa ser politizado e
tomado para si pelo povo organizado; sua importância para a história que
se escreve no presente — para além das penas cuja execução está sendo ameaçada
pela Câmara dos Deputados — está clara no fato de, pela primeira vez em nossa
história, o STF haver firmado jurisprudência sobre o crime de
tentativa de golpe, tipificando-o e punindo seus agentes. Decisão capital em
democracia republicana, a nossa, sangrada por intervenções e ditaduras
militares, algumas longevas, como a instaurada em 1º de abril de 1964.
Regressemos à realpolitik, essa que se desenrola em Brasília, e ainda
tece os cordéis de nossa pequena política.
Se o presidente Hugo Motta, hoje nos primeiros momentos de seu mandato, corre o
risco de, ao seu término, ser reconhecido como pato manco, o relator do PL
da Anistia, versado no “sindicalismo de resultados”, já disse a que veio. Corre
de seca a Meca e leva a discussão sobre o futuro da proposta — tão
decisivo para o futuro da democracia brasileira — para nova rodada de
conchavos, fora da Câmara e longe da opinião pública. Em suas redes sociais,
anunciou estar dialogando com Aécio Neves e Michel Temer (o perjuro), figuras
que se notabilizaram na crônica brasileira recente pela considerável
contribuição para o golpismo e a ascensão da direita.
Já se sabe, a confiar nos relatos estrategicamente vazados à imprensa, que a
anistia geral e irrestrita poderá ser desidratada e reapresentada
como revogação de “condenações injustas” (o que isso significa na cachola do
relator, jejuno em direito e outras artes, não se sabe) e revisão de penas
supostamente excessivas, coisa que, no juridiquês empolado dos
tribunais, se chama dosimetria. O que contemplaria, entre outros, o chefe da
quadrilha, o capitão e ex-presidente Bolsonaro, hoje em prisão
domiciliar em uma das mansões da família recentemente enriquecida.
A crônica, porém, não toca a questão central, que é a continuidade de um real
processo de golpe de Estado, em cuja raiz está a emergência e o crescimento do
neofascismo, que se espalha pelo mundo como rastilho de pólvora e que, entre
nós, é reduzido ao bolsonarismo — a jabuticaba que se antecipou
ao trumpismo do segundo mandato instalado na Casa Branca como a
liderança da extrema-direita no mundo: intrusiva, belicosa, sem limites de
qualquer ordem, inclusive moral.
O neofascismo detesta a democracia, embora, como vemos nos
discursos do magnata, fale em liberdade de expressão e direitos
humanos, quando cerceia a liberdade e leva às raias do absurdo a barbárie
do negacionismo científico: uma das promessas dessa gente é deixar as
crianças estadunidenses mais expostas a doenças infecciosas como a
poliomielite, pois vacinas obrigatórias seriam “uma espécie de escravidão”.
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