sábado, 20 de setembro de 2025

O sindicato do crime reage na Câmara. Por Roberto Amaral*

“– Mas quem comeu tudo? Quem?

– Os ratos, doutor, os ratos!”
(“Seminário dos ratos”, Lygia Fagundes Telles)

O que se viu na Câmara dos Deputados no calar da noite da última terça-feira, 17/09, não é o fim nem o começo de um enredo a se desenvolver em longos capítulos, como os antigos folhetins dos jornais ou as telenovelas cômico-lacrimosas da atualidade. Nem é tedioso, para ser a um só tempo farsa e tragédia, como tudo que é desagradável na política — e, neste ponto, a contribuição contemporânea é especialmente rica.

O abuso da quarta-feira (aprovação da urgência do Projeto de Lei da Anistia), que se seguiu ao da terça (aprovação, em dois turnos, da “PEC da Blindagem”), é a primeira perna do abuso seguinte, complemento necessário quando a atual faina legislativa se esmera, entre uma afronta e outra ao projeto de Estado social, em blindar organizações criminosas da mais variada tipologia, infiltradas em instâncias do poder, ameaçando de falência a República.


Essas recentes agressões à dignidade nacional (outras estão por vir, e virão, se não retomarmos o árduo e inadiável trabalho de organização social) dão a justa medida do rés-do-chão político e ético a que pode cair um poder autorreferente, apartado do mundo real e carcomido por interesses que pouco dizem respeito ao interesse público, às necessidades e aos sonhos do país. Caso que é o retrato da Câmara dos Deputados nas últimas legislaturas — não dela toda, decerto, mas da maioria de seus membros: algo como 3/5 do colegiado.

O ajuntamento que podemos, sem muito exagero, denominar “sindicato do crime” conta hoje, portanto, com um quórum de maioria absoluta na Câmara, o que lhe permite emendar a Constituição, abrir processo de impeachment contra o presidente da República e aprovar ou vetar o que seja (quem pode mais, pode menos), se não for contido pela casa revisora, o Senado Federal, no qual tampouco o republicanismo pode ser dado como cláusula pétrea.

É denotativo o fato de, em um coletivo de 511 deputados, apenas uma minoria (cento e poucos parlamentares) tenha enfrentado, em nome da dignidade, a afronta do rolo compressor do atraso associado à iniquidade: o encontro do Centrão com a extrema-direita.
Sob qualquer ponto de vista, é infame a aprovação, feita a toque de caixa, da urgência da proposta que chantageia a Nação com a promessa de impunidade dos criminosos que, por mais de quatro anos, no poder e dele se servindo, investiram contra a democracia, atentaram e ainda atentam contra o país, pondo-se gostosamente a serviço do atual inquilino da Casa Branca, que nos agride e nos insulta, ao tempo em que insulta a humanidade, abraçando, financiando e amparando política e militarmente o genocídio dos palestinos.

Caso aprovada, a anistia “ampla, geral e irrestrita”, como jamais vista, decretará a impunidade de todos os golpistas — desde o chefe da organização criminosa (qualificação que devemos ao STF) e seus estrelados cúmplices até os desordeiros do dia 8 de janeiro de 2023.

O Projeto de Lei nº 2162/2023 é sórdido, mas há pouco acaso na história: ele responde ao avanço da direita na política e na sociedade. Não por acaso é firmado pelo pastor-deputado Marcelo Crivella, hoje bem conhecido do eleitorado fluminense, e seu relator, escolhido a dedo pelo presidente da Câmara, é o notório deputado Paulinho da Força, candidato a beneficiário da PEC da Blindagem de parlamentares flagrados em delito, sejam eles “simplesmente” corruptos contumazes e assaltantes do poder público, sejam criminosos políticos, como sempre foi e é Jair M. Bolsonaro, e como o é, acintosamente, seu filho 03 (presentemente nos EUA em remunerada vilegiatura contra os interesses do Brasil), ou mesmo criminosos comuns.

O presidente Hugo Motta, articulador da PEC da Blindagem (ou da “bandidagem”, numa acepção mais esclarecedora, que rapidamente se difundiu) e do PL da Anistia, revela-se aplicado discípulo de Eduardo Cunha e Arthur Lira — este, ao que se diz, seu criador e mentor.

Nesse mister divorciado de respeito ao cargo, Motta se esmerou em negociações pouco ortodoxas, como aquelas que foram reveladas por Maria Cristina Fernandes, articulista de primeira grandeza que lustra o diário da Faria Lima. Na edição do dia 17/09 do Valor, ela escreve com todas as letras: “Blindagem escancara a política, sem intermediação, ao crime”.

Não é ocioso lembrar que a iniciativa da blindagem é levada a cabo poucos dias após o MP de São Paulo haver revelado )as relações nada canônicas do crime organizado — PCC e adjacências — com o mercado financeiro e sua infiltração nas estruturas do Estado, para além do notório acumpliciamento com unidades da segurança pública, mais notadamente nos estados de São Paulo e Rio de Janeiro (onde, há poucos dias, foi preso um deputado estadual, integrante da cúpula do crime organizado).

Maria Cristina narra o périplo do presidente Hugo e de líderes do Centrão em busca de apoio à blindagem. O que ela revela não é chamado de chantagem, mas os fatos não carecem de interpretação. Assim, o presidente da Câmara, na segunda-feira, 15/09 (véspera da primeira votação), teria procurado em seu gabinete o presidente Lula propondo um “acordo”: o governo apoiaria a PEC da Blindagem, e a coalizão dominante na Casa aprovaria uma anistia “restrita à redução das penas” (mais adiante ver-se-á como Paulinho da Força, na qualidade de procurador de Motta, entrará em cena).

Mas as negociações não terminavam aí, porque os líderes do Centrão, ainda nesse episódio, fizeram chegar a ministros do STF que a contrapartida deles para a aceitação da constitucionalidade da PEC seria a garantia de que, doravante, aqueles juízes não seriam mais incomodados com ameaças de impeachment. A proposta trazia ainda um bônus: a promessa de o Centrão negociar com o deputado Eduardo Bolsonaro, agente da extrema-direita junto à Casa Branca, a garantia de que as penas da lei Magnitsky, aplicadas por Trump contra Alexandre de Moraes, não se estenderiam aos demais membros da Corte. 

Poderiam ficar tranquilos, dizia a súcia.

A blindagem, logo nos primeiros momentos, foi mal-recebida tanto no Senado, onde não deverá gozar de livre curso, quanto na sociedade. A grande imprensa não gostou (o que não é irrelevante) e as agências de pesquisa de opinião registram a rejeição da iniciativa pela manifestação majoritária da população.

Não é esse o curso previsto para o PL da Anistia, tão ou mais inaceitável técnica, política e moralmente, embora nossa história republicana ensine, e o faz com toda a clareza, que a impunidade é a escola e a semente do golpismo.

O projeto, porém, não conta com oposição clara nem enfrenta, pelo que se pode aferir, a necessária articulação do governo, limitado em seus movimentos por uma correlação de forças claramente desfavorável, que não logra alterar. De outra parte, até aqui, a ameaça não despertou a indignação popular, pelo menos no nível que gostaríamos de estar festejando.

A ingente defesa da independência e da soberania nacionais, justamente hegemônica no campo progressista, parece fazer sombra cerrada ao combate à insólita anistia, a que se somam as conhecidas dificuldades que o movimento progressista tem, já de algum tempo, nas suas tentativas de mobilização. Elas decorrem, como todo fenômeno social, de mil indicadores, todos razoavelmente rastreados, como a atonia dos partidos do campo da esquerda, o recesso das entidades de classe de um modo geral e a crise do trabalho, de que decorre a crise do sindicalismo, que não nos cansamos de registrar, sem condições, porém, de indicar alternativas.

Minoria no Congresso, sem voz na grande imprensa, desarticulados nossos tradicionais grupos de pressão, somos frequentemente estimulados a procurar alternativas na resistência. O caminho, principalmente em face de derrotas parlamentares, ou em sua iminência, é o socorro ao apelo judicial, em princípio o recurso justo de toda minoria. Mas não se pode crer que todas as tarefas de defesa da democracia — cujo ponto capital, hoje, aqui, reside na condenação dos golpistas — sejam atribuição pura e exclusiva do poder judiciário, por natureza frágil e sem defesa objetiva, principalmente quando carece de sustentação na mobilização popular.

A sociedade parece não apoiar o STF não na extensão da importância da causa. Imóvel, não acena, pelo menos ainda não acena, com maior gesto de solidariedade, e as ruas, que não reclamaram os julgamentos nem festejaram as condenações, hesitam na exigência do cumprimento das penas, ameaçado interna (os últimos movimentos na Câmara) e internacionalmente (dispensável relembrar as promessas de retaliação contínua da Casa Branca). Nesse vácuo caminha o torpedo da anistia, em suas diversas versões.

Às forças progressistas, no mais amplo espectro, cumpre, organizadas, a retomada das ruas deixadas vazias para os passeios do fascismo, mobilizado como jamais esteve e ouvido como nunca, pelas grandes massas. Nesse sentido, são alvissareiras as convocações (pelas frentes Brasil Popular e Povo sem Medo, entre outros) para manifestações, já para o domingo, 21/09, em quase todo o país, contra a PEC da Bandidagem e a anistia aos golpistas. 
A praça só é do povo quando ele a ocupa. E quando a ocupa, quase sempre faz história.

O significado simbólico do julgamento do STF precisa ser politizado e tomado para si pelo povo organizado; sua importância para a história que se escreve no presente — para além das penas cuja execução está sendo ameaçada pela Câmara dos Deputados — está clara no fato de, pela primeira vez em nossa história, o STF haver firmado jurisprudência sobre o crime de tentativa de golpe, tipificando-o e punindo seus agentes. Decisão capital em democracia republicana, a nossa, sangrada por intervenções e ditaduras militares, algumas longevas, como a instaurada em 1º de abril de 1964.

Regressemos à realpolitik, essa que se desenrola em Brasília, e ainda tece os cordéis de nossa pequena política.

Se o presidente Hugo Motta, hoje nos primeiros momentos de seu mandato, corre o risco de, ao seu término, ser reconhecido como pato manco, o relator do PL da Anistia, versado no “sindicalismo de resultados”, já disse a que veio. Corre de seca a Meca e leva a discussão sobre o futuro da proposta — tão decisivo para o futuro da democracia brasileira — para nova rodada de conchavos, fora da Câmara e longe da opinião pública. Em suas redes sociais, anunciou estar dialogando com Aécio Neves e Michel Temer (o perjuro), figuras que se notabilizaram na crônica brasileira recente pela considerável contribuição para o golpismo e a ascensão da direita.

Já se sabe, a confiar nos relatos estrategicamente vazados à imprensa, que a anistia geral e irrestrita poderá ser desidratada e reapresentada como revogação de “condenações injustas” (o que isso significa na cachola do relator, jejuno em direito e outras artes, não se sabe) e revisão de penas supostamente excessivas, coisa que, no juridiquês empolado dos tribunais, se chama dosimetria. O que contemplaria, entre outros, o chefe da quadrilha, o capitão e ex-presidente Bolsonaro, hoje em prisão domiciliar em uma das mansões da família recentemente enriquecida.

A crônica, porém, não toca a questão central, que é a continuidade de um real processo de golpe de Estado, em cuja raiz está a emergência e o crescimento do neofascismo, que se espalha pelo mundo como rastilho de pólvora e que, entre nós, é reduzido ao bolsonarismo — a jabuticaba que se antecipou ao trumpismo do segundo mandato instalado na Casa Branca como a liderança da extrema-direita no mundo: intrusiva, belicosa, sem limites de qualquer ordem, inclusive moral.

O neofascismo detesta a democracia, embora, como vemos nos discursos do magnata, fale em liberdade de expressão e direitos humanos, quando cerceia a liberdade e leva às raias do absurdo a barbárie do negacionismo científico: uma das promessas dessa gente é deixar as crianças estadunidenses mais expostas a doenças infecciosas como a poliomielite, pois vacinas obrigatórias seriam “uma espécie de escravidão”.

O que, ademais, não carrega qualquer novidade: vimos aqui, estarrecidos, o comportamento do bolsonarismo quando da epidemia de Covid-19 — crimes que, agora, serão examinados pelo Supremo, por decisão do ministro Flávio Dino.

Os norte-americanos conheceram a brutalidade do macarthismo e a caça às bruxas na primeira metade dos anos 1950. Voltam agora a um autoritarismo ainda mais petulante e agressivo.

Nós, saídos da ditadura militar, quando mal começávamos a conviver com a segurança democrática, fomos assaltados pelos quatro anos do bolsonarismo governante. Insurreto, voltou a nos ameaçar na intentona de 2023, para nos advertir de que a peçonha, embora derrotada, não foi esmagada.

A história se limita a ensinar, com seus exemplos.

***

Soberania em xeque — Coroando uma semana de golpes sobre golpes, numa manhã de quinta-feira de plenário esvaziado a Câmara dos Deputados aprovou a urgência para a apreciação do PL nº 2780/2024, que cuida de desonerar as grandes mineradoras em atuação no país, e além disso incentiva e subsidia ativamente a pilhagem de recursos estratégicos nossos, como são os elementos conhecidos como terras-raras. O deputado Glauber Braga (PSOL-RJ) tem sido uma voz quase solitária na denúncia desse descalabro no Congresso Nacional. Sua indignação merece o apoio de todos nós.

Pacificação – Não há pacificação possível entre o crime e a lei, a democracia e o fascismo.
 
* Com a colaboração de Pedro Amaral

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