sábado, 20 de setembro de 2025

A PEC da Blindagem é constitucional? Por Acelino Rodrigues Carvalho

Folha de S. Paulo

Autorização para processar e julgar legisladores viola princípio de separação dos Poderes

Inafastabilidade do controle jurisdicional é garantia processual do cidadão

Batizada pelos deputados de "PEC das Prerrogativas", a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 3/21, aprovada em dois turnos pela Câmara dos Deputados na última quarta-feira (17), com ampla maioria de votos, recebeu da imprensa o apelido de PEC da Blindagem —exatamente por exigir autorização da Câmara dos Deputados ou do Senado para que o Supremo Tribunal Federal (STF) possa processar e julgar deputados e senadores pela prática de eventuais crimes. Dita medida legislativa padece de dupla inconstitucionalidade.

A nossa vigente Constituição consagrou a doutrina da separação de Poderes de Montesquieu, como forma de evitar que o poder fique concentrado em um único centro, ao mesmo tempo em que deve funcionar como um sistema de freios e contrapesos capaz de garantir a necessária limitação do poder conformadora do conceito de Estado de Direito. Somado ao elemento democrático legitimador a priori do poder, esse mecanismo configura o específico modelo de organização política aqui adotado, a saber: o Estado democrático de Direito.

Como princípio estruturante do ordenamento político-jurídico da República, a separação de Poderes vem protegida pela Lei Maior como cláusula pétrea: Não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir: III - a separação dos Poderes (CF art. 60, § 4º, III). Impossível, portanto, sua disposição por parte do poder político. Somente por isso a tal PEC da Blindagem já poderia ser considerada inconstitucional.

A Constituição, porém, vai além e explicita de forma a não deixar margem para dúvida a competência por ela conferida ao Poder Judiciário, afirmando, ademais, a sua indisponibilidade por parte do legislador infraconstitucional: "a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito" (CF art. 5º, XXXV).

Como se vê, cabe ao Poder Judiciário o exercício da função jurisdicional, a qual consiste em verificar e decidir, quando provocado, acerca da violação ou ameaça a direito, sem que ninguém, nem mesmo o legislador democrático, possa lhe impedir de fazê-lo.

Qualquer tentativa nesse sentido significa atentar contra o funcionamento de um dos Poderes da República, o que poderia configurar até mesmo, em última análise, tentativa de abolição do Estado democrático de Direito via Parlamento.

Contudo, a Carta não protege somente a competência do Poder Judiciário e o exercício de sua função precípua: a inafastabilidade do controle jurisdicional configura uma garantia processual fundamental do cidadão, consistente no direito de acesso à jurisdição diante de violação ou ameaça a direito. Trata-se da garantia constitucional do direito de ação conferido a cada cidadão individualmente considerado ou em contexto grupal.

Nesse sentido, tenha-se em mente que as condutas humanas tipificadas hipoteticamente como crime, uma vez praticadas por alguém, atingem não apenas e imediatamente a pessoa da vítima, mas toda a sociedade.

Como consequência, os indivíduos que vivem sob sua égide têm o direito de buscar a punição do infrator pelo crime cometido, o que se dá por meio da própria sociedade política organizada, isto é, do Estado, através de um órgão autônomo e independente, que é o Ministério Público. Também essa garantia fundamental acha-se protegida como cláusula pétrea: Não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir: IV - os direitos e garantias individuais (CF art. 60, § 4º, IV).

Está, pois, subtraída ao poder dispositivo do legislador. Resta evidenciado, portanto, que a PEC da Blindagem é duplamente inconstitucional e, se aprovada pelo Senado e posteriormente promulgada, deve ser assim declarada pela Suprema Corte, uma vez provocada.

 

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