sábado, 20 de setembro de 2025

O tempo chega. Por Flávia Oliveira

O Globo

Se inconformismo e paixão germinam a luta, cabe evocar exemplos de persistência, superação, vitória

Câmara dos Deputados transformou em certeza o que era desconfiança: parlamentares agem em causa própria, em detrimento das urgências do Brasil. Maioria folgada da Casa aprovou tanto a PEC da Blindagem (344 votos favoráveis em segundo turno) — passe livre para violar a lei impunemente — quanto um ainda desconhecido projeto de anistia (311 votos pela tramitação em urgência) aos golpistas, entre os quais o ex-presidente Jair Bolsonaro, condenado há uma semana. De quebra, o PL ungiu Eduardo Bolsonaro líder da minoria, para que mantenha remuneração do Legislativo, enquanto, dos Estados Unidos, reivindica sanções contra autoridades e exportações brasileiras. Quem brincava de punitivista tornou-se devoto do abolicionismo penal de ocasião.

Ficou claro o empenho das Excelências — sobretudo da extrema direita e do Centrão — por autoproteção, enfrentamento ao Supremo Tribunal Federal e, não menos importante, em prol das exigências do clã Bolsonaro. A reputação do Legislativo desaba ladeira abaixo, como atestam seguidas pesquisas de opinião, hashtags críticas nas redes sociais e uma mobilização por manifestações de rua há muito adormecida no campo progressista. Até a Confederação Nacional dos Bispos do Brasil, que representa a Igreja Católica, veio a público lembrar que “a política deve ser lugar de serviço ao bem comum”.

Se inconformismo e paixão germinam a luta, cabe evocar exemplos de persistência, superação, vitória. Foi o que Lélia Wanick e o saudoso Sebastião Salgado produziram na degradada Fazenda Bulcão (Aimorés-MG) ao longo de três décadas. O que era erosão fez-se floresta, com vegetação, água e fauna, incluindo a onça-parda, topo da cadeia alimentar e, por isso, prova da recomposição completa da Mata Atlântica local. São de Salgado as fotos que compõem o cenário de um ato do show pelos 60 anos de carreira de Maria Bethânia, ela também ponto de afeto, fé e esperança na brasilidade. Martinho da Vila, há meio século, entoa o samba tornado mantra: “Canta forte, canta alto, que a vida vai melhorar”.

Mês que vem, o Ministério dos Direitos Humanos, em solenidade na histórica Faculdade de Direito da USP, entregará 102 certidões de óbito retificadas a famílias de mortos e desaparecidos na ditadura militar (1964-1985), entre elas, as dos ex-deputados Rubens Paiva e Carlos Marighella. Em fins de agosto, em Belo Horizonte (MG), duas dezenas, incluindo as do estudante Stuart Angel e de sua mãe, a estilista Zuzu, já tinham sido apresentadas às famílias. Os documentos, por resolução do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), passam a informar que as vítimas tiveram “morte não natural, violenta, causada pelo Estado Brasileiro”. Desfecho da busca incessante por verdade e reparação de figuras como Ana Dias, viúva do operário Santo Dias, Clarice Herzog, do jornalista Vladimir, e Eunice Paiva, de Rubens. Esta última eternizada em “Ainda estou aqui”, longa de Walter Salles, com Fernanda Torres no papel principal, vencedor do Oscar de Melhor Filme Internacional neste ano.

Na última terça-feira, em Brasília, o CNJ determinou a retificação dos atestados de óbito dos 11 jovens vítimas da Chacina de Acari, em 1990. O massacre, perpetrado por policiais integrantes de um grupo de extermínio batizado Cavalos Corredores, atestou que a redemocratização não pôs fim à violência de Estado. Os assassinatos permaneceram impunes; os corpos jamais foram encontrados. Mas o grupo de mães pretas da favela, tornadas ativistas pelo luto, não esmoreceu. Recorreram à Corte Interamericana de Direitos Humanos em 2006; esperaram pela primeira audiência até 2023. Em fins do ano passado, o Brasil foi condenado a, entre outras ações, emitir as certidões com a inscrição “morte não natural, violenta, causada por agente do Estado no contexto do desaparecimento forçado das vítimas da Chacina de Acari”. Seis delas já morreram. Edmea da Silva Euzébio, mãe de Luiz Henrique, foi executada com a sobrinha Sheila, três anos depois do filho, por denunciar a participação de agentes da lei na barbárie.

O presidente do CNJ, ministro Luís Roberto Barroso, pediu desculpas às famílias em nome do Estado. Presidente da organização Mães de Acari, Aline Leite de Souza ainda espera o mesmo do presidente da República. Ela tinha 7 anos quando o irmão, Wallace, foi assassinado:

— A vida inteira foi dessa luta.

As certidões de óbito retificadas restituem dignidade a famílias que nem sequer tiveram o direito de enterrar seus mortos, vítimas de desaparecimento forçado. É mazela que persiste no Brasil do século XXI. Em 2024, segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública, foram 81.873 registros, 4,9% a mais que no ano anterior. São quatro notificações por dia, concentradas, não por acaso, nas regiões mais violentas do país, como a disfarçar estatísticas de homicídio.

As três décadas e meia que separam as Mães de Acari do reconhecimento de que os filhos foram vítimas do Estado, entre outros episódios elencados, estão aí a provar que o tempo chega. Desistir nunca foi opção.

 

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