O Globo
Se inconformismo e paixão germinam a luta,
cabe evocar exemplos de persistência, superação, vitória
A Câmara dos Deputados transformou em certeza o que era desconfiança: parlamentares agem em causa própria, em detrimento das urgências do Brasil. Maioria folgada da Casa aprovou tanto a PEC da Blindagem (344 votos favoráveis em segundo turno) — passe livre para violar a lei impunemente — quanto um ainda desconhecido projeto de anistia (311 votos pela tramitação em urgência) aos golpistas, entre os quais o ex-presidente Jair Bolsonaro, condenado há uma semana. De quebra, o PL ungiu Eduardo Bolsonaro líder da minoria, para que mantenha remuneração do Legislativo, enquanto, dos Estados Unidos, reivindica sanções contra autoridades e exportações brasileiras. Quem brincava de punitivista tornou-se devoto do abolicionismo penal de ocasião.
Ficou claro o empenho das Excelências —
sobretudo da extrema direita e do Centrão — por autoproteção, enfrentamento ao
Supremo Tribunal Federal e, não menos importante, em prol das exigências do clã
Bolsonaro. A reputação do Legislativo desaba ladeira abaixo, como atestam
seguidas pesquisas de opinião, hashtags críticas nas redes sociais e uma
mobilização por manifestações de rua há muito adormecida no campo progressista.
Até a Confederação Nacional dos Bispos do Brasil, que representa a Igreja
Católica, veio a público lembrar que “a política deve ser lugar de serviço ao
bem comum”.
Se inconformismo e paixão germinam a luta,
cabe evocar exemplos de persistência, superação, vitória. Foi o que Lélia
Wanick e o saudoso Sebastião
Salgado produziram na degradada Fazenda Bulcão (Aimorés-MG) ao longo
de três décadas. O que era erosão fez-se floresta, com vegetação, água e fauna,
incluindo a onça-parda, topo da cadeia alimentar e, por isso, prova da
recomposição completa da Mata Atlântica local. São de Salgado as fotos que
compõem o cenário de um ato do show pelos 60 anos de carreira de Maria
Bethânia, ela também ponto de afeto, fé e esperança na brasilidade.
Martinho da Vila, há meio século, entoa o samba tornado mantra: “Canta forte,
canta alto, que a vida vai melhorar”.
Mês que vem, o Ministério dos Direitos
Humanos, em solenidade na histórica Faculdade de Direito da USP, entregará 102
certidões de óbito retificadas a famílias de mortos e desaparecidos na ditadura
militar (1964-1985), entre elas, as dos ex-deputados Rubens Paiva e Carlos
Marighella. Em fins de agosto, em Belo Horizonte (MG), duas dezenas, incluindo
as do estudante Stuart Angel e de sua mãe, a estilista Zuzu, já tinham sido
apresentadas às famílias. Os documentos, por resolução do Conselho Nacional de
Justiça (CNJ),
passam a informar que as vítimas tiveram “morte não natural, violenta, causada
pelo Estado Brasileiro”. Desfecho da busca incessante por verdade e reparação
de figuras como Ana Dias, viúva do operário Santo Dias, Clarice Herzog, do
jornalista Vladimir, e Eunice Paiva, de Rubens. Esta última eternizada em “Ainda estou
aqui”, longa de Walter
Salles, com Fernanda
Torres no papel principal, vencedor do Oscar de Melhor Filme
Internacional neste ano.
Na última terça-feira, em Brasília, o CNJ
determinou a retificação dos atestados de óbito dos 11 jovens vítimas da
Chacina de Acari,
em 1990. O massacre, perpetrado por policiais integrantes de um grupo de
extermínio batizado Cavalos Corredores, atestou que a redemocratização não pôs
fim à violência de Estado. Os assassinatos permaneceram impunes; os corpos
jamais foram encontrados. Mas o grupo de mães pretas da favela, tornadas
ativistas pelo luto, não esmoreceu. Recorreram à Corte Interamericana de
Direitos Humanos em 2006; esperaram pela primeira audiência até 2023. Em fins
do ano passado, o Brasil foi condenado a, entre outras ações, emitir as
certidões com a inscrição “morte não natural, violenta, causada por agente do
Estado no contexto do desaparecimento forçado das vítimas da Chacina de Acari”.
Seis delas já morreram. Edmea da Silva Euzébio, mãe de Luiz Henrique, foi
executada com a sobrinha Sheila, três anos depois do filho, por denunciar a
participação de agentes da lei na barbárie.
O presidente do CNJ, ministro Luís
Roberto Barroso, pediu desculpas às famílias em nome do Estado. Presidente
da organização Mães de Acari, Aline Leite de Souza ainda espera o mesmo do
presidente da República. Ela tinha 7 anos quando o irmão, Wallace, foi
assassinado:
— A vida inteira foi dessa luta.
As certidões de óbito retificadas restituem
dignidade a famílias que nem sequer tiveram o direito de enterrar seus mortos,
vítimas de desaparecimento forçado. É mazela que persiste no Brasil do século
XXI. Em 2024, segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública, foram 81.873
registros, 4,9% a mais que no ano anterior. São quatro notificações por dia,
concentradas, não por acaso, nas regiões mais violentas do país, como a
disfarçar estatísticas de homicídio.
As três décadas e meia que separam as Mães de
Acari do reconhecimento de que os filhos foram vítimas do Estado, entre outros
episódios elencados, estão aí a provar que o tempo chega. Desistir nunca foi
opção.
Nenhum comentário:
Postar um comentário