O Globo
Aborto é assunto evitado da centro-esquerda à
centro-direita pelo risco de perda de votos
Em junho do ano passado, o Supremo Tribunal
Federal tomou uma decisão histórica: ignorando a opinião de 67% da população, a
Corte definiu que qualquer usuário poderia portar até 40 gramas de maconha sem
risco de ser preso. A grita no Congresso foi grande. O então presidente da
Câmara, Arthur Lira, anunciou a criação de uma comissão para analisar uma
Proposta de Emenda à Constituição de autoria do comandante do Senado na
ocasião, Rodrigo Pacheco, para reverter a decisão. Hoje, passados 16 meses,
ninguém debate mais sobre o assunto. A regra estabelecida pelo STF está em
vigor, e nenhum índice de violência disparou.
A descriminalização da maconha foi colocada em pauta em 2023 pela então presidente da Corte, Rosa Weber. Sóbria e coerente, a ministra passou quase 12 anos no Supremo sem dar nenhuma entrevista e tendo como marca a defesa institucional do tribunal. Em sua despedida, ela decidiu dar mais um passo histórico na defesa das liberdades individuais e proferiu um voto de 129 páginas para descriminalizar o aborto realizado até a 12ª semana de gestação.
O ministro Luís Roberto Barroso, que sucedeu
a Rosa na presidência da Corte, interrompeu o julgamento. Apesar de ter dito
que caberia ao STF “empurrar a história na direção certa” quando tratasse da
defesa dos direitos fundamentais, Barroso relutou por dois anos a pautá-lo,
alegando que não considerava a sociedade pronta para aquele debate. No último
dia de trabalho no tribunal, há duas semanas, pediu uma sessão extraordinária e
finalmente votou a favor da descriminalização do aborto.
Em poucos dias, o tema já voltou a adormecer
na gaveta — agora a de Gilmar Mendes —, de onde todos os Poderes de Brasília
esperam que não saia. O fato de Lula ter sinalizado que escolherá o
advogado-geral da União, Jorge Messias, para suceder a Barroso deixou claro que
o caso deverá enfrentar ainda mais dificuldade nos próximos anos. No rol de
qualidades que o presidente adotou como critério para escolher ministros do STF
em seu terceiro mandato, a única relevante é a fidelidade pessoal e
intransferível a ele próprio. Tudo mais é periférico: do gênero e raça do
candidato às agendas ideológicas que professa ou sua relevância nos debates
jurídicos.
A realização de um aborto é um daqueles
assuntos complexos, que envolvem valores morais, científicos, éticos e
religiosos. Como tal, se tornou plataforma preferencial de políticos
extremistas para emparedar adversários. Ele é evitado da centro-esquerda à
centro-direita pelo risco de perda de votos, especialmente nas disputas
majoritárias. Por isso, o primeiro desafio do Supremo é informativo.
O que está em discussão na Corte não é a
legalização e regulamentação do aborto. Não está em votação no STF a permissão
para que hospitais públicos e clínicas privadas o realizem ou de que forma
poderiam fazê-lo. A única questão em debate é se as mulheres que realizam
abortos — e quem as ajuda — devem ser presas, como prevê a lei hoje.
O debate é sobre os limites da interferência
do Estado sobre as liberdades individuais. Só que nem Lula, nem o Centrão, nem
os ministros da Corte querem entrar nessa arena. Não é por terem medo de
polêmicas, mas por verem pouco benefício político ao tratar especificamente do
tema. Com o retorno de Lula ao poder, o STF não hesitou em caçar questiúnculas
processuais para livrar da cadeia praticamente todos os empresários e políticos
corruptos envolvidos no desvio multibilionário da Lava-Jato. A oposição
bolsonarista, por sua vez, milita publicamente dia e noite para livrar da
prisão os artífices de uma tentativa de golpe de Estado que previa até o
assassinato do presidente eleito.
Para as mulheres que correm risco de ser
presas por ter chegado à situação-limite de optar por um aborto clandestino,
resta o silêncio e o fundo escuro de uma gaveta.

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