domingo, 26 de outubro de 2025

Cadeia para as mulheres, por Paulo Celso Pereira

O Globo

Aborto é assunto evitado da centro-esquerda à centro-direita pelo risco de perda de votos

Em junho do ano passado, o Supremo Tribunal Federal tomou uma decisão histórica: ignorando a opinião de 67% da população, a Corte definiu que qualquer usuário poderia portar até 40 gramas de maconha sem risco de ser preso. A grita no Congresso foi grande. O então presidente da Câmara, Arthur Lira, anunciou a criação de uma comissão para analisar uma Proposta de Emenda à Constituição de autoria do comandante do Senado na ocasião, Rodrigo Pacheco, para reverter a decisão. Hoje, passados 16 meses, ninguém debate mais sobre o assunto. A regra estabelecida pelo STF está em vigor, e nenhum índice de violência disparou.

A descriminalização da maconha foi colocada em pauta em 2023 pela então presidente da Corte, Rosa Weber. Sóbria e coerente, a ministra passou quase 12 anos no Supremo sem dar nenhuma entrevista e tendo como marca a defesa institucional do tribunal. Em sua despedida, ela decidiu dar mais um passo histórico na defesa das liberdades individuais e proferiu um voto de 129 páginas para descriminalizar o aborto realizado até a 12ª semana de gestação.

O ministro Luís Roberto Barroso, que sucedeu a Rosa na presidência da Corte, interrompeu o julgamento. Apesar de ter dito que caberia ao STF “empurrar a história na direção certa” quando tratasse da defesa dos direitos fundamentais, Barroso relutou por dois anos a pautá-lo, alegando que não considerava a sociedade pronta para aquele debate. No último dia de trabalho no tribunal, há duas semanas, pediu uma sessão extraordinária e finalmente votou a favor da descriminalização do aborto.

Em poucos dias, o tema já voltou a adormecer na gaveta — agora a de Gilmar Mendes —, de onde todos os Poderes de Brasília esperam que não saia. O fato de Lula ter sinalizado que escolherá o advogado-geral da União, Jorge Messias, para suceder a Barroso deixou claro que o caso deverá enfrentar ainda mais dificuldade nos próximos anos. No rol de qualidades que o presidente adotou como critério para escolher ministros do STF em seu terceiro mandato, a única relevante é a fidelidade pessoal e intransferível a ele próprio. Tudo mais é periférico: do gênero e raça do candidato às agendas ideológicas que professa ou sua relevância nos debates jurídicos.

A realização de um aborto é um daqueles assuntos complexos, que envolvem valores morais, científicos, éticos e religiosos. Como tal, se tornou plataforma preferencial de políticos extremistas para emparedar adversários. Ele é evitado da centro-esquerda à centro-direita pelo risco de perda de votos, especialmente nas disputas majoritárias. Por isso, o primeiro desafio do Supremo é informativo.

O que está em discussão na Corte não é a legalização e regulamentação do aborto. Não está em votação no STF a permissão para que hospitais públicos e clínicas privadas o realizem ou de que forma poderiam fazê-lo. A única questão em debate é se as mulheres que realizam abortos — e quem as ajuda — devem ser presas, como prevê a lei hoje.

O debate é sobre os limites da interferência do Estado sobre as liberdades individuais. Só que nem Lula, nem o Centrão, nem os ministros da Corte querem entrar nessa arena. Não é por terem medo de polêmicas, mas por verem pouco benefício político ao tratar especificamente do tema. Com o retorno de Lula ao poder, o STF não hesitou em caçar questiúnculas processuais para livrar da cadeia praticamente todos os empresários e políticos corruptos envolvidos no desvio multibilionário da Lava-Jato. A oposição bolsonarista, por sua vez, milita publicamente dia e noite para livrar da prisão os artífices de uma tentativa de golpe de Estado que previa até o assassinato do presidente eleito.

Para as mulheres que correm risco de ser presas por ter chegado à situação-limite de optar por um aborto clandestino, resta o silêncio e o fundo escuro de uma gaveta.

 

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