domingo, 26 de outubro de 2025

Deus e o diabo na Câmara, por Bernardo Mello Franco

O Globo

Diabo. Demônio. Satanás. Os três nomes do coisa-ruim foram invocados por deputados na noite de quarta-feira. Faltou citarem Tinhoso, Asmodeu, Lúcifer, Capiroto, Cramunhão, Belzebu...

Numa semana cheia de assuntos urgentes, a Câmara parou para debater o projeto que cria a bancada cristã. A ideia foi apresentada pelos líderes das frentes católica e evangélica. Eles se uniram para tentar emplacar uma nova instância de poder subordinada à fé.

A proposta significa um retrocesso em múltiplas dimensões: atropela a laicidade do Estado, discrimina adeptos de outras religiões, põe a Bíblia à frente da Constituição.

No texto, os deputados Gilberto Nascimento e Luiz Gastão afirmam que os cristãos são 80% da população brasileira e “desejam ver representados, no Parlamento, seus princípios éticos e espirituais”. Eles acrescentam que a bancada garantirá “maior articulação e visibilidade às pautas que defendem”, como se as igrejas já não tivessem força para promover seus interesses em Brasília.

O projeto reivindica a criação de uma bancada oficial, com direito a votar nas reuniões de líderes e a pedir a palavra durante as sessões. Na prática, o grupo funcionaria como um partido político, porém com delegação divina e não do eleitor.

Apesar de usarem o nome de Deus, os articuladores da proposta cultivam ambições bem terrenas. Querem mais poder para impor suas pautas e bloquear projetos que contrariem a pregação de padres e pastores.

“Com a bancada cristã, o movimento conservador se organiza. O movimento conservador ganha força neste plenário”, celebrou o dublê de deputado e pastor Otoni de Paula. O bolsonarista Bibo Nunes tachou os críticos da ideia de “comunistas” que “não acreditam em Deus”. “Criem a bancada do demônio”, provocou.

Os autores do projeto garantem que a bancada cristã “não tem caráter excludente”. Mas não explicam por que judeus, muçulmanos, espíritas, umbandistas e agnósticos não teriam direito a uma representação semelhante na Câmara. Os deputados também dizem se inspirar nas bancadas negra e feminina. Conversa fiada. Negros e mulheres são historicamente subrepresentados no Congresso, o que nunca aconteceu com os cristãos.

O debate de quarta deu uma amostra do que vem por aí. A deputada Bia Kicis balançou o espantalho do fechamento de igrejas e da perseguição a religiosos. O deputado Reinhold Stephanes Júnior chamou o PSOL de “partido satanás” e disse que a sigla “defende valores que só o diabo defende”.

Mais cedo, um misto de culto e reunião política escancarou as intenções da turma. O bispo Marcelo Crivella entoou um louvor em defesa da anistia aos golpistas, incluindo o ex-presidente Jair Bolsonaro. “O batom na estátua não apaga a esperança”, cantarolou.

Com apoio de Hugo Motta, o projeto que cria a bancada cristã teve a urgência aprovada por 398 votos a 30. Ao ser alertado de que o texto é inconstitucional, o presidente da Câmara se esquivou: disse que o mérito só será examinado depois.

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