quarta-feira, 22 de outubro de 2025

Cortar despesas, trabalho de relojoeiro, por Lu Aiko Otta

Valor Econômico

Planejamento lança ferramenta para que gestores das mais de 600 políticas públicas federais façam autoavaliação e descubram o que funciona e o que pode ser eliminado

Enquanto o presidente da Argentina, Javier Milei, dispõe de uma motosserra para cortar despesas, o governo brasileiro trabalha com uma chave de fenda. Mas, enquanto a atuação do primeiro causa tensão na sociedade, o “trabalho de relojoeiro” feito por aqui parece ser mais sustentável. Essa foi a avaliação feita pelo ministro da Fazenda, Fernando Haddad, em entrevista à GloboNews, nesta terça-feira (21). Ele falava sobre o crescimento das despesas obrigatórias, cuja contenção é uma tarefa que não acabou. O governo precisará retornar a temas propostos que o Congresso Nacional não quis avaliar, como os supersalários do funcionalismo, o sistema de aposentadoria dos militares e os fundos constitucionais.

O avanço das despesas obrigatórias é, talvez, o ponto mais criticado por especialistas quando avaliam a gestão atual. A trajetória insustentável lança uma sombra sobre outros feitos do governo, como o crescimento acima do esperado, a reforma tributária, a queda do desemprego.

Para colocar em pé o Orçamento de 2026 depois que o Congresso deixou caducar a Medida Provisória (MP) 1.303/25, o governo preparou dois projetos de lei: um do embate e outro da relojoaria.

O do embate aumenta a taxação sobre bets e fintechs. Depois da vitória de 493 a zero na votação na Câmara do projeto de lei que isenta do Imposto de Renda as pessoas que ganham até R$ 5 mil, o governo pegou gosto por propostas com potencial de mobilização social e para as quais dizer “não” pega mal.

No da relojoaria, vai insistir no aperto dos controles na concessão do auxílio-doença e do seguro-defeso, além de incluir o Pé-de-Meia no piso de gastos com educação e melhorar o controle na compensação dos sistemas previdenciários de Estados e municípios em relação à Previdência Social. A mesma proposta deverá contemplar a limitação de compensações tributárias, medida que sozinha eleva receitas em R$ 10 bilhões ao ano.

Um olhar mais atento sobre como o governo gasta o dinheiro do contribuinte ou, numa variação, deixa de arrecadar tributos para estimular determinados setores é tema de um relatório que o Ministério do Planejamento enviou recentemente ao Congresso Nacional, com a avaliação de oito políticas públicas.

Na área de gastos tributários, bandeira levantada pelo presidente da Câmara dos Deputados, Hugo Motta (Republicanos-PB), e que virá à pauta em algum momento do longo trabalho de reconstrução das contas públicas, chama a atenção a análise sobre o Perse, programa criado por iniciativa do Congresso em 2021 para apoiar empresas dos setores de evento e turismo durante a pandemia. Reduziu a zero, por 60 meses, as alíquotas de IRPJ, PIS/Cofins e CSLL.

Como Odete Roitman, personagem de “Vale Tudo”, o programa foi encerrado em março passado, mas nem tanto. Ainda há discussões na Justiça.

“Dá saudade do Perse”, disse à coluna o presidente-executivo da Associação Brasileira de Bares e Restaurantes (Abrasel), Paulo Solmucci. O programa cumpriu seu papel, e as empresas que tiveram acesso a ele foram muito favorecidas, avaliou.

“Mas sempre achei o Perse um programa falho, porque não contemplou as empresas do Simples, talvez as que mais sofreram com a pandemia”, completou.

Esse é um dos achados da avaliação do Ministério do Planejamento. Além de as empresas mais vulneráveis terem ficado de fora, o Perse beneficiou da mesma forma quem fechou na pandemia e quem continuou operando.

Cálculos incluídos no relatório apontam que as empresas participantes do programa criaram 12 empregos a mais do que as não participantes, em média.

O custo, porém, foi elevado. Na média, cada emprego consumiu R$ 99,4 mil em 2024, ao passo que o salário médio anual dos trabalhadores das empresas do setor é de R$ 50,4 mil. O relatório conclui que, “para cada real gasto com o programa, o benefício gerado é de cinquenta centavos.”

O Perse tinha também problemas de governança, aponta o relatório. Não havia definição formal de papéis dos gestores responsáveis pela implementação do programa, instrumentos de gestão de risco específicos, instâncias de participação social ou interação entre atores públicos e privados, lista. Tampouco havia registros sobre quanto foi gasto no programa antes de 2024.

Chamado pelo Planejamento a opinar, o Ministério do Turismo cita a própria lei que criou o programa para dizer que não tinha “responsabilidade direta quanto à execução ou à gestão” do Perse. Procurada, a Associação Brasileira dos Promotores de Eventos (Abrape) não se manifestou até a conclusão desta edição.

Nesta semana, o Planejamento lançou uma ferramenta para que os gestores das mais de 600 políticas públicas federais façam uma autoavaliação, para massificar o olhar lançado sobre o Perse.

“No cenário de restrição [orçamentária] que se avizinha, pode ter um interesse dos gestores em produzirem evidências das políticas que operam bem”, disse à coluna o secretário de Monitoramento e Avaliação de Políticas Públicas do Ministério do Planejamento, Wesley Matheus de Oliveira.

Avaliar gastos é bom para saber o que cortar e o que não cortar. É trabalho de relojoeiro.

 

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