A primeira delas é: que tratamento político deve-se dispensar a cúmplices e seguidores engajados de Bolsonaro que cometeram crimes diversos em 8 de janeiro de 2023, já após o fracasso consumado da conspiração dos seus chefes? Aqui o óbvio ululante também precisa comparecer para fazer um segundo aviso: este colunista não tem a pretensão de fazer do seu teclado um martelo judicial e discutir a dosimetria das penas. Limita-se a assinalar a pertinência e importância política do tema da dosimetria, que uma retórica de justiçamento quer desqualificar.
Por vezes, as
objeções a esse tema são tão ardorosas que parecem sugerir que elas – as penas
– já estão inscritas em algum código penal “natural”, inscrito na intimidade de
almas puras, de modo a dispensar o julgamento propriamente dito. Se no
memorável samba “Segredo”, já cabia a máxima de que é preciso julgar para
depois condenar, ela vale mais ainda quando não é de segredos de quatro paredes
que se trata, mas de assuntos públicos. Para além do bom senso que qualquer
pessoa pode acessar, a situação pede juízo político. O que está em jogo diante
da presença ou ausência desse juízo é se será possível, ou não, curar as
feridas da prolongada confrontação que tem feito a política brasileira descer
ladeira há mais de uma década.
A segunda
questão é: como lidar com os milhões de eleitores que não cometeram qualquer
crime, mas que depois de todos os eventos ocorridos e das circunstâncias agora
conhecidas, seguem com intenção de votar na extrema-direita? Será possível que
também nesse caso é preciso mobilizar o óbvio ululante como aviso ou esse óbvio
já é a própria resposta? O tratamento aí só pode ser político. Num ambiente
político minimamente saudável, não há espaço para julgamento algum desses
cidadãos-eleitores, pois é de opiniões que se trata e, numa democracia, elas
existem para brilhar e circular, não para serem vítimas de estigmas e
“calcificarem”. No terreno integralmente político dessa segunda questão,
persuasão é a gramática para a livre comunicação, enquanto ressentimento e
vingança a interditam.
É preciso a
linguagem política fazer essa distinção entre chefes, cúmplices, militantes e
eleitores, de modo prático, didático, pedagógico para uma boa educação
democrática do país. E isso não está sendo feito. Em vez disso, flerta-se
perigosamente com a transposição de linhas divisórias entre esses conjuntos
distintos de pessoas a ponto de se esquecer que é de pessoas, afinal, que se
trata.
Sei muito bem
que são linhas imaginárias. No mundo real as coisas convivem borradas,
tangendo-se, interpenetrando-se. Mas nem por isso as linhas divisórias são
demarcações irrelevantes, ou dispensáveis. Democracias não se fortalecem de
modo sustentável sem imaginação democrática. Se o espaço do imaginário político
for tomado pelas ideias de castigo, reparação e, no limite, revanche, restará
um deserto onde se deveria plantar, sim, e sempre, a semente da tolerância.
Virou
"espírito do tempo" fazer de vidraça nossa tradição política
conciliatória. As partes da sociedade civil e da sociedade política que se
consideram imunizadas contra o golpismo sentem-se imbuídas da missão de
extirpar da nossa cultura política aquela tradição como se fosse um modo de
acabar com esse segundo traço. É difuso o cacoete de interpretar o paralelismo
histórico entre conciliação e golpismo como relação de causa e efeito.
De fato, o golpismo
não nasceu pronto, como vírus congênito. Pode-se dizer que surgiu com a
dissolução da primeira Assembleia Constituinte pelo Imperador, em 1824, após
curta vigência da experiência conciliadora inaugural, a que levou à nossa
independência política. Mas o golpismo só se alastrou, de modo recorrente,
tornando-se traço de uma cultura política, bem depois de uma longeva
estabilidade da tradição conciliadora. É genitor da nossa experiência
republicana e, como se sabe, daí em diante nem sempre foi acionado para
entabular políticas socialmente regressivas em nome da ordem. Em certos
momentos o golpismo difuso foi método ensaiado contra incipientes instituições
democráticas, em nome do progresso, econômico e social. E se hoje, quando tais
instituições não são mais incipientes, as intentonas golpistas partem da
extrema-direita, nada garante que o argumento da ditadura “do bem” não ressurja
montado nalgum discurso demiúrgico ou redentor.
O golpismo como
prática recorrente é um cacoete com origens nas corporações militares, mas é
também, e fortemente, um legado político do que houve de impolítico na chamada
Era Vargas. A tradição conciliatória cresceu e afirmou-se em convívio com ele,
não como face de uma mesma moeda - como hoje pensa a maior parte da nossa
sociedade civil. Ela cresceu e afirmou-se também em contraponto ao golpismo. É
uma arte mobilizada pela política para muitas coisas, nem todas admiráveis, é
verdade. Há conluios corporativos, prática social que, aliás, não é distintiva
da política e corta transversalmente a sociedade organizada dos emersos. Mas a ideia de conciliação é frequentemente
mobilizada também contra inimigos da democracia. Se atirarmos pedras nesse
telhado supostamente de vidro ficaremos, no quesito poder político, ao relento
e entregues a soberanos internos que cavalgam suas aspirações no cavalo selado
da bandeira da soberania em nossas relações com o mundo. Como se aguentar algum
tipo de despotismo fosse um pedágio necessário para se ter não apenas essa
autodeterminação, como também justiça social e respeito às leis civis e
políticas. Caso clássico de perda do objeto da vida democrática por excessos
antipolíticos. Dentre esses excessos, a ideia de faxina.
A moléstia de
fundo que estigmatizou a Lava-Jato está sobrevivendo à vigência daquela
operação. Sobrevive como traço de cultura política, que aspira ações
antissépticas como alternativa à conciliação. Tem alguma chance de vingar,
especialmente nos andares médios e altos do nosso imprudente edifício social.
Pode-se até impor ao país, por algum tempo, esse novo "modo de ser".
Mas não se conquista por esses métodos as mentes e o coração de um povo. Se a
conciliação for abolida em cima, é provável que, embaixo, reine, na anomia, a
lei do cão, que há tempos já se infiltrou nos alicerces do edifício. Além do
mais, é falacioso, uma pedalada lógica, dizer que o golpismo retorna porque não
se quebra seus ovos.
É fato o sucesso
democrático de algumas conciliações. Por exemplo, a de 1945-46, que depôs o
então ditador sem impedir seu direito político de retornar democraticamente
pelas urnas, em 1950. Os efeitos daquela conciliação terminaram bloqueados por
uma sequência de golpismos reacionários, é verdade, mas também por impulsos
voluntaristas que pretendiam fazer reformas sociais na marra, se não desse pra
fazer pela lei. Mas o exemplo de
conciliação mais luminoso de todos - e que perdura até nossos dias com chances
de vida ainda mais longa – é o da transição democrática. Seu legado exemplar é
a democracia resiliente e massiva que temos. Em contraponto, temos experiências
funestas quando a conciliação nos falta. O caso de 1964 é o mais notório e
trágico, mas não é o único.
Nada disso quer
dizer que conciliação é e sempre será boa e que sua ausência sempre
representará risco sério de tragédia. Afirmar isso seria imprudente, além de
falacioso também, mas ainda mais imprudente e falacioso é inverter os termos da
experiência histórica para dizer que, eliminando a conciliação e elegendo a
ruptura como gramática, estaremos curando a moléstia do golpismo. De onde vem
essa convicção e sua correlata, de que o golpismo retorna por causa da
conciliação? Ele não poderá retornar apesar e não por causa da conciliação? A
ideia de que conciliação é o vírus portador da moléstia é tese suspensa no ar,
que se dispensa de demonstração.
Em lugar desse
raciocínio enganoso é preciso atar uma pequena política conciliadora a uma grande
política que faça da conciliação caminho de pacificação do terreno onde a
competição política pode substituir a guerra. Esse terreno pacificado não é o
cemitério das ideologias, que readquirem visível importância no mundo atual. É
o terreno do compromisso das ideologias com um objeto comum que só pode ser os
dos destinos de uma nação. Noções de futuro que ideologias podem transportar, não
como negação demolidora ou devoção fantasiosa do passado, mas em diálogo
informado com ele, através da mediação da política, uma atividade sempre
comprometida com um presente contínuo.
Conjuntura e
projetos de país
São dois planos
de análise distintos e não há conexão visível entre eles. Exatamente por isso
penso que a discussão concomitante de ambos é incontornável. Na discussão do
cenário imediato as controvérsias são mais simples, mas o dissenso pode ter um
efeito mais dispersivo.
Em entrevista ao
SBT News, em março de 2024, o presidente Lula afirmou que a política
brasileira, na sua dimensão eleitoral, não girava em torno de partidos ou
campos políticos e sim em torno de duas personalidades, a dele próprio e a de Jair
Bolsonaro. Nada poderia ser mais exemplar de uma fotografia num momento em que
o país pede para que se entabule um filme atando passado, presente e, se
possível, futuro.
O contexto dessa
declaração foi a decisão do ministro Alexandre de Moraes, no dia 15 daquele mês
e ano, de retirar o sigilo sobre 27 depoimentos colhidos pela Polícia Federal
na investigação da trama golpista havida no final do governo anterior, cujos
ecos fizeram-se ouvir no 8 de janeiro de 2023, já depois da posse do atual
presidente. Essa decisão de Moraes foi tomada nove meses depois do TSE já haver
decidido (em junho de 23) pela inelegibilidade do ex-presidente para as
eleições de 2026.
A expectativa,
então, era a de que a divulgação das gravações piorasse – como de fato piorou –
a situação judicial de Bolsonaro, com a sua interdição eleitoral imediata,
decretada pelo TSE, evoluindo para uma punição mais abrangente que, face à sua
idade, significasse o seu afastamento definitivo da vida pública. Derivada
dessa expectativa, confirmada agora em 2025, firmava-se uma segunda, de que
esse destino judicial de Bolsonaro tivesse forte influência sobre o
comportamento da parte do eleitorado que havia votado nele em 2018 e 2022.
Naquele
contexto, a declaração de Lula relativizava essa presumível reversão. Sugeria
que, apesar do rumo do processo judicial, a influência pessoal de Bolsonaro
seguiria sendo eleitoralmente decisiva no embate plebiscitário entre os dois
líderes e em comparações entre seus governos. No dia seguinte à declaração, esta
coluna comentou-a (O golpismo em ato de Bolsonaro e a narrativa eleitoral de
Lula -16.03.2024), interpretando que o presidente parecia raciocinar com duas
hipóteses. A primeira (que o próprio Lula devia considerar improvável), de uma comoção
política relevante no campo de apoio ao rival levar, às pesquisas de opinião e
mesmo às ruas, a solidariedade a ele e a protestos contra o processo judicial,
mostrando a efetividade maior da polarização personalista. A segunda hipótese
seria a da orfandade do eleitorado bolsonarista, que oposições partidárias não
seriam capazes de resolver, pela mesma razão, ou seja, a circunscrição do
protagonismo eleitoral a dois personagens. Essa segunda hipótese permitiria a
Lula sonhar com um cenário semelhante ao do seu segundo governo, durante o qual
a oposição não tinha condições de desafiar eleitoralmente a situação.
No mesmo artigo
esta coluna cogitava outras duas hipóteses que poderiam desmentir o diagnóstico
da personificação calcificada da polarização política. A terceira – mais
provável que a quarta – seria a extrema-direita ter que aceitar um papel
coadjuvante de apoio a uma forte candidatura oposicionista de direita e
centro-direita, que poderia ser, por exemplo, a do governador Tarcísio de
Freitas. A outra, improvável, seria um centro democrático – então, como ainda
hoje, presente no governo - desistir da coadjuvância que o tem anulado como
força política e disputar o apoio da centro-direita, retomando a trilha
abandonada da candidatura de Simone Tebet em 2022, mesmo não sendo mais ela a
candidata.
Um ano e meio
após a fala presidencial ao SBT, a quarta hipótese (da terceira via, mesmo
batizada com novo nome) segue muito improvável e a primeira (a do apoio ativo e
massivo ao retorno de Bolsonaro à cena), descartável, apesar dos esforços
atrapalhados do seu filho “exilado” nos EUA. O atual cenário eleitoral é ainda turvo,
mas oscila entre o sonho de Lula de remover óbices à sua reeleição manejando a
própria ambiguidade e a incapacidade da oposição de ser relevante sem Bolsonaro,
OU a constituição de uma unidade oposicionista capaz de criar um campo político
com dinâmica de aliança de raposas, apostando na ambiguidade sem carisma para desafiar
o presidente talvez já no primeiro e mais provavelmente no segundo turno. Ou
seja, oscila entre um freezer ligado na função conservação e um forno que
funciona por micro-ondas, sem fósforos.
No primeiro
caso, a tese da centralidade das duas personalidades carismáticas na política
brasileira sobreviveria ao menos a 2026. No segundo caso, já teria início uma
transição a uma dinâmica eleitoral pela qual o eleitorado passaria a escolher,
gradualmente, entre campos políticos. É entre essas duas hipóteses que se armam
e se executam hoje, respectivamente, as estratégias eleitorais no governo e na
oposição. O quadro pode ser resumido como uma polarização entre Lula e a
direita, pela qual o “centro” é um grande ausente, cuja marca simpática é
disputada por ambos os polos. Por que essa disputa ocorre, se o centro é fraco?
A maioria das
análises, centrada em fatores de comportamento eleitoral, argumenta que o eleitorado
“de centro” é disputado e tende a ser cortejado, apesar de ser muito pouco
numeroso, porque é fiel da balança entre dois grandes conglomerados de
eleitores situados “à direita” e “à esquerda” do espectro político. O cientista
político Felipe Nunes tem dado especial ênfase a esse diagnóstico, amparando-o
pedagogicamente em números que, grosso modo, são: cerca de 35% do conglomerado
à direita, 35% do conglomerado à esquerda, cerca de 20% de eleitores que tendem
a se abster, sobrando 10% de eleitores, metade dos quais podem ser chamados de
centro (ele chama de liberais sociais). É o equilíbrio de peso eleitoral dos
dois polos que tornaria o comportamento eleitoral desse pequeno grupo intermediário
decisivo na eleição, como ocorreu em 2022. A repetição de mais ou menos o mesmo
quadro quatro anos depois expressaria uma “calcificação” das preferências
eleitorais no Brasil.
Quanto ao campo
da “grande direita”, a tese de Nunes já merecia uma atualização e talvez uma
ressalva, pelo menos desde que ficou claro, não apenas o alijamento de
Bolsonaro da disputa de 2026 como a sua condenação judicial severa. Ela é por
si só indutora do seu isolamento imediato na política institucional, com
previsível desdobramento sobre o eleitorado, exceto no pequeno núcleo formado
por seus seguidores engajados.
No caso do
eleitor de centro-esquerda, a ideia de calcificação ampara-se no fato de que,
nesse campo, a intenção de voto em Lula deriva automaticamente da rejeição
radical ao bolsonarismo, por ser percebida como única opção ao “retorno da
extrema-direita ao governo”. Essa leitura tem muito apelo eleitoral e diante da
conjuntura política mais recente, mais radicalizada, a calcificação nesse campo
tende até a aumentar. Mas a recíproca não é tão evidente quando se pode ver uma
disputa em aberto no campo do eleitor polarizado pela direita e pela
centro-direita, para o qual, bom ou ruim, Bolsonaro era visto antes também como
única opção do antilulismo. Nesse campo, não é de hoje que a percepção de uma
redefinição no mínimo concorre com a de calcificação. A nova rodada de
pesquisas do próprio instituto Quaest, dirigido por Nunes, parece reforçar essa
percepção. Novos dados analisados sugerem que as percepções do eleitorado da
"grande direita" estão em movimento.
Esse movimento,
que começa a romper a bolha da avaliação fortemente negativa do desempenho do
presidente e do governo. resultará também em deslocamento equivalente e
consistente de intenções de voto a ponto de permitir a Lula um patamar
eleitoral superior ao de 2022? Ou resultará em diversificação do voto de
oposição, abrindo caminho a um êxito eleitoral de uma oposição com programa
moderado, numa disputa em dois turnos? No âmbito de prognósticos de comportamento
eleitoral é impossível responder agora a essa pergunta.
Pesquisas com
foco deslocado do comportamento eleitoral para “atitudes políticas” mais
abrangentes e permanentes dos eleitores podem oferecer outros parâmetros e
outro viés de análise. Parâmetros e viés que se afastam ainda mais da pretensão
de fazer prognósticos eleitorais imediatos porque não permitem sequer mapear
intenções de voto atuais, as conhecidas “fotografias de momento”. Mas podem dar
pistas sobre que tipos de discurso e argumentação política podem fazer
diferença ao poderem sensibilizar (ou mesmo descalcificar) comportamentos
eleitorais a longo, médio ou curto prazo, a depender de condições objetivas e
subjetivas de lideranças e grupos políticos de prestarem devida atenção a essas
pistas, mobilizarem a orientarem recursos materiais e políticos em sintonia com
elas,
Artigo de ontem
do cientista político Pablo Ortellado (O Brasil dos invisíveis – O Globo
10.10.2025) reflete de maneira instigante sobre uma pesquisa dessa natureza, da
organização civil internacional More in Common. Trata-se de dados sobre o que se
pode chamar de atitudes políticas de seis segmentos, batizados de “patriotas
indignados” (os últimos fatos devem recomendar a mudança dessa etiqueta) e
“progressistas militantes”, dois segmentos antagônicos e fortemente engajados à
direita e à esquerda; “conservadores tradicionais” e “esquerda tradicional”
(segmentos que possuem menos engajamento mas com identificação razoavelmente
visível como direita e esquerda, embora mais por afinidades do que por coesão e
homogeneidade); por fim, os “desengajados” e os “cautelosos”, que seriam os
mais invisíveis, não sendo possível qualifica-los, nitidamente, como direita ou
esquerda. Os dois extremos antagônicos
são os mais visíveis e ruidosos e os menos numerosos, alcançando, cada um cerca
de 5% do universo pesquisado. Já os dois últimos segmentos (dos invisíveis) são
os mais numerosos, expressando, cada qual, 27% do mesmo universo.
O que se
salienta como intrigante não é a existência desses segmentos de invisíveis que,
somados, constituem algo com sentido aproximado ao que sempre se chamou de
“maioria silenciosa.” O que impressiona é que essa maioria não seja apenas
relativa, nem metafórica, no sentido de que se presuma ser expressão passiva de
um senso comum. Ela é numericamente absoluta num contexto fartamente analisado
como de forte polarização política (originária do mundo político, onde é
evidente e quase sempre crescente, há 11 anos) que já teria transbordado para o
mundo social não só em forma de polarização política, mas também
“afetiva”.
O entendimento
que pude ter a partir do artigo de Ortellado é de que não se trata de uma
pesquisa que permita fazer diagnóstico, estimativas ou mesmo hipóteses ou
ilações sobre comportamento eleitoral dos brasileiros. Entendi que é uma
fotografia do que costumamos chamar de atitude política dos cidadãos, os quais
também são eleitores. Assim, cada um dos seis segmentos (exceto talvez os dois
extremos) não deve ser entendido de modo preciso como direita ou esquerda e
menos ainda como formado por pessoas que votam e/ou devem votar num campo ou em
outro. Os fatores que influenciam o comportamento eleitoral tendem a ser mais
contingentes e não necessariamente respeitam as demarcações relativas a
atitudes políticas, que são disposições permanentes.
Além de ser
expressiva, como diagnóstico, a maioria de invisíveis resilientes aos apelos
polarizantes de supostos polos - que não se revelam, de fato, polarizadores - o
que me parece, à primeira vista, muito significativo nessa pesquisa é a
conclusão que Ortellado ressalta no parágrafo final do seu texto e que a
editoria converteu em epígrafe: “sob as ruidosas e intolerantes guerras culturais,
resiste um substrato majoritário, comedido e independente”. A segmentação de
atitudes presentes no eleitorado, tal como apresentada, evidencia fortes
disposições a reagir positivamente a mensagens moderadas que facções da elite
política possam vir a emitir durante competições eleitorais majoritárias,
incluindo e indo além de 2026. Como, aliás, ocorreu em eleições subnacionais em
2020, 2022 e 2024 e, de certa maneira, deu a Lula a vitória, na presidencial de
2022.
Claro que um
ator político com a experiência no ramo e a habilidade pessoal de Lula pode, em
tese, dispensar limões azedos e tentar fazer uma limonada refrescante, como fez
para se eleger em 2002. Mas diante do que acontece na política brasileira desde
2013/2014 e das ambiguidades de Lula 3 entre hegemonismo esquerdista e
aceitação de uma frente plural, essa doce possibilidade exigirá um esforço
incomum, um giro que seria dispensado, no caso de uma candidatura de oposição
genuinamente detentora dessa atitude moderada. Achado que também não parece
fácil de se conseguir nas fileiras externas ao governo.
A pesquisa a meu
ver mostra que se tal candidatura não surgiu ou não surgirá, os motivos não são
inclinações "impolíticas" do eleitorado. Talvez estejam mais nas
bocas tortas dos partidos e lideranças políticas de um centro que não encontra
tradução empírica porque cedeu à linguagem dos polos, que é socialmente
minoritária, mas tornou-se língua franca na sociedade política. Não se trata,
portanto, de opor de modo pseudo-realista, razões da pequena política para
desprezar, como se fosse um adorno acadêmico, esse panorama atitudinal dos
brasileiros comuns. Trata-se de atuar na pequena política, sim, sem
desprezá-la, mas sintonizando-a com essa predisposição gritante do demos. É a
bola do realismo democrático que surge na área pedindo para ser chutada.
Quem pode fazer
isso são segmentos da elite política que, se tomada a decisão de representar
essa disposição, têm acesso a meios materiais e institucionais de fazê-la
migrar das pesquisas para o terreno dos fatos políticos.
Riscos sobram,
mas chances não faltam. Acredito que se trata de um problema de ação coletiva
de difícil resolução. Mas sua não solução deriva do reino da impotência
política e não do da impossibilidade.
O improvável
promissor
No plano da
conjuntura não há como esperar protagonismo da esquerda, a não ser a sua
simbólica amarração ao destino político de Lula. No outro plano é que se trata,
para ela ou outra que a substitua, de buscar linhas de pensamento que amparem
algum tipo de protagonismo no futuro. Em 2026, para quem tem atitude
progressista, mas não deseja seguir a caravana lulista, o problema é ter em
quem votar e fazer campanha no primeiro turno. No máximo, o script Tebet, sob
outra encarnação, mais antenada a demandas conservadoras.
Uma campanha que
deixe como legado para ser desenvolvido entre 2026 e 2030 o script que Tebet
não seguiu de 2022 a 2025. Isso em tese será possível se houver espaço para
trabalhar uma semântica alternativa à do confronto. Muito difícil fazer isso
sem uma candidatura que seja firme e insista em veicular esse contraponto.
Para além da
eleição, vale Millôr Fernandes: “livre pensar, é só pensar”. Se me permitem,
quero fazer uma digressão para trazer à conversa a sequência chilena pós
Pinochet: Aylwin, Eduardo Frei, Ricardo Lagos, Michele Bachelet. Um blend
progressivo, seguido de alternância entre Bachelet e Pinera até chegarem a
Boric. Pode dar perda agora? Pode,
sempre pode, é da natureza das coisas da política democrática. Mas pode não dar
e mesmo se der, tende a não ser devastadora, como foi a queda de Allende. Uma
concertação de forças precisa iniciar um processo de difusão de uma semântica
política similar no Brasil.
O mesmo ponto,
sob outro enquadramento, mais colado no que há e não tanto no que pode
haver: penso que nas circunstâncias de
empobrecimento do debate político, não podemos querer omelete melhor que a
polarização de 2026 ser a disputa pelo lugar de pacificador, mesmo que entre
Lula e um Tarcísio de Freitas.
O pressuposto
analítico aqui adotado é que pacificação não virá, nem via Lula, nem via Tarcísio,
se eles forem as únicas opções sérias do jogo eleitoral de 2022. Em tempo:
sérias e vencedoras não são palavras sinônimas.
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