domingo, 12 de outubro de 2025

Golpismo, conciliação, pacificação e eleições. Por Paulo Fábio Dantas Neto

O título deste artigo não vem a propósito de discutir se é cabível ou não conciliar com os chefes golpistas recentemente condenados. É óbvio que não é cabível. Mas estamos num tempo em que o “óbvio ululante” de Nelson Rodrigues precisa ser dito como aviso, para que não se negue “lugar de fala” a quem tem a intenção de ir além dele. Para justificar o título há duas outras questões, essas, sim, politicamente relevantes e controversas. Como baixou a temperatura e o telefone tocou, talvez seja hora mais propícia a refletir sobre essas questões.

A primeira delas é:  que tratamento político deve-se dispensar a cúmplices e seguidores engajados de Bolsonaro que cometeram crimes diversos em 8 de janeiro de 2023, já após o fracasso consumado da conspiração dos seus chefes? Aqui o óbvio ululante também precisa comparecer para fazer um segundo aviso: este colunista não tem a pretensão de fazer do seu teclado um martelo judicial e discutir a dosimetria das penas. Limita-se a assinalar a pertinência e importância política do tema da dosimetria, que uma retórica de justiçamento quer desqualificar.

Por vezes, as objeções a esse tema são tão ardorosas que parecem sugerir que elas – as penas – já estão inscritas em algum código penal “natural”, inscrito na intimidade de almas puras, de modo a dispensar o julgamento propriamente dito. Se no memorável samba “Segredo”, já cabia a máxima de que é preciso julgar para depois condenar, ela vale mais ainda quando não é de segredos de quatro paredes que se trata, mas de assuntos públicos. Para além do bom senso que qualquer pessoa pode acessar, a situação pede juízo político. O que está em jogo diante da presença ou ausência desse juízo é se será possível, ou não, curar as feridas da prolongada confrontação que tem feito a política brasileira descer ladeira há mais de uma década.

A segunda questão é: como lidar com os milhões de eleitores que não cometeram qualquer crime, mas que depois de todos os eventos ocorridos e das circunstâncias agora conhecidas, seguem com intenção de votar na extrema-direita? Será possível que também nesse caso é preciso mobilizar o óbvio ululante como aviso ou esse óbvio já é a própria resposta? O tratamento aí só pode ser político. Num ambiente político minimamente saudável, não há espaço para julgamento algum desses cidadãos-eleitores, pois é de opiniões que se trata e, numa democracia, elas existem para brilhar e circular, não para serem vítimas de estigmas e “calcificarem”. No terreno integralmente político dessa segunda questão, persuasão é a gramática para a livre comunicação, enquanto ressentimento e vingança a interditam.

É preciso a linguagem política fazer essa distinção entre chefes, cúmplices, militantes e eleitores, de modo prático, didático, pedagógico para uma boa educação democrática do país. E isso não está sendo feito. Em vez disso, flerta-se perigosamente com a transposição de linhas divisórias entre esses conjuntos distintos de pessoas a ponto de se esquecer que é de pessoas, afinal, que se trata.

Sei muito bem que são linhas imaginárias. No mundo real as coisas convivem borradas, tangendo-se, interpenetrando-se. Mas nem por isso as linhas divisórias são demarcações irrelevantes, ou dispensáveis. Democracias não se fortalecem de modo sustentável sem imaginação democrática. Se o espaço do imaginário político for tomado pelas ideias de castigo, reparação e, no limite, revanche, restará um deserto onde se deveria plantar, sim, e sempre, a semente da tolerância.

Virou "espírito do tempo" fazer de vidraça nossa tradição política conciliatória. As partes da sociedade civil e da sociedade política que se consideram imunizadas contra o golpismo sentem-se imbuídas da missão de extirpar da nossa cultura política aquela tradição como se fosse um modo de acabar com esse segundo traço. É difuso o cacoete de interpretar o paralelismo histórico entre conciliação e golpismo como relação de causa e efeito.

De fato, o golpismo não nasceu pronto, como vírus congênito. Pode-se dizer que surgiu com a dissolução da primeira Assembleia Constituinte pelo Imperador, em 1824, após curta vigência da experiência conciliadora inaugural, a que levou à nossa independência política. Mas o golpismo só se alastrou, de modo recorrente, tornando-se traço de uma cultura política, bem depois de uma longeva estabilidade da tradição conciliadora. É genitor da nossa experiência republicana e, como se sabe, daí em diante nem sempre foi acionado para entabular políticas socialmente regressivas em nome da ordem. Em certos momentos o golpismo difuso foi método ensaiado contra incipientes instituições democráticas, em nome do progresso, econômico e social. E se hoje, quando tais instituições não são mais incipientes, as intentonas golpistas partem da extrema-direita, nada garante que o argumento da ditadura “do bem” não ressurja montado nalgum discurso demiúrgico ou redentor.

O golpismo como prática recorrente é um cacoete com origens nas corporações militares, mas é também, e fortemente, um legado político do que houve de impolítico na chamada Era Vargas. A tradição conciliatória cresceu e afirmou-se em convívio com ele, não como face de uma mesma moeda - como hoje pensa a maior parte da nossa sociedade civil. Ela cresceu e afirmou-se também em contraponto ao golpismo. É uma arte mobilizada pela política para muitas coisas, nem todas admiráveis, é verdade. Há conluios corporativos, prática social que, aliás, não é distintiva da política e corta transversalmente a sociedade organizada dos emersos.  Mas a ideia de conciliação é frequentemente mobilizada também contra inimigos da democracia. Se atirarmos pedras nesse telhado supostamente de vidro ficaremos, no quesito poder político, ao relento e entregues a soberanos internos que cavalgam suas aspirações no cavalo selado da bandeira da soberania em nossas relações com o mundo. Como se aguentar algum tipo de despotismo fosse um pedágio necessário para se ter não apenas essa autodeterminação, como também justiça social e respeito às leis civis e políticas. Caso clássico de perda do objeto da vida democrática por excessos antipolíticos. Dentre esses excessos, a ideia de faxina.

A moléstia de fundo que estigmatizou a Lava-Jato está sobrevivendo à vigência daquela operação. Sobrevive como traço de cultura política, que aspira ações antissépticas como alternativa à conciliação. Tem alguma chance de vingar, especialmente nos andares médios e altos do nosso imprudente edifício social. Pode-se até impor ao país, por algum tempo, esse novo "modo de ser". Mas não se conquista por esses métodos as mentes e o coração de um povo. Se a conciliação for abolida em cima, é provável que, embaixo, reine, na anomia, a lei do cão, que há tempos já se infiltrou nos alicerces do edifício. Além do mais, é falacioso, uma pedalada lógica, dizer que o golpismo retorna porque não se quebra seus ovos.

É fato o sucesso democrático de algumas conciliações. Por exemplo, a de 1945-46, que depôs o então ditador sem impedir seu direito político de retornar democraticamente pelas urnas, em 1950. Os efeitos daquela conciliação terminaram bloqueados por uma sequência de golpismos reacionários, é verdade, mas também por impulsos voluntaristas que pretendiam fazer reformas sociais na marra, se não desse pra fazer pela lei.  Mas o exemplo de conciliação mais luminoso de todos - e que perdura até nossos dias com chances de vida ainda mais longa – é o da transição democrática. Seu legado exemplar é a democracia resiliente e massiva que temos. Em contraponto, temos experiências funestas quando a conciliação nos falta. O caso de 1964 é o mais notório e trágico, mas não é o único.

Nada disso quer dizer que conciliação é e sempre será boa e que sua ausência sempre representará risco sério de tragédia. Afirmar isso seria imprudente, além de falacioso também, mas ainda mais imprudente e falacioso é inverter os termos da experiência histórica para dizer que, eliminando a conciliação e elegendo a ruptura como gramática, estaremos curando a moléstia do golpismo. De onde vem essa convicção e sua correlata, de que o golpismo retorna por causa da conciliação? Ele não poderá retornar apesar e não por causa da conciliação? A ideia de que conciliação é o vírus portador da moléstia é tese suspensa no ar, que se dispensa de demonstração.

Em lugar desse raciocínio enganoso é preciso atar uma pequena política conciliadora a uma grande política que faça da conciliação caminho de pacificação do terreno onde a competição política pode substituir a guerra. Esse terreno pacificado não é o cemitério das ideologias, que readquirem visível importância no mundo atual. É o terreno do compromisso das ideologias com um objeto comum que só pode ser os dos destinos de uma nação. Noções de futuro que ideologias podem transportar, não como negação demolidora ou devoção fantasiosa do passado, mas em diálogo informado com ele, através da mediação da política, uma atividade sempre comprometida com um presente contínuo. 

Conjuntura e projetos de país

São dois planos de análise distintos e não há conexão visível entre eles. Exatamente por isso penso que a discussão concomitante de ambos é incontornável. Na discussão do cenário imediato as controvérsias são mais simples, mas o dissenso pode ter um efeito mais dispersivo. 

Em entrevista ao SBT News, em março de 2024, o presidente Lula afirmou que a política brasileira, na sua dimensão eleitoral, não girava em torno de partidos ou campos políticos e sim em torno de duas personalidades, a dele próprio e a de Jair Bolsonaro. Nada poderia ser mais exemplar de uma fotografia num momento em que o país pede para que se entabule um filme atando passado, presente e, se possível, futuro.

O contexto dessa declaração foi a decisão do ministro Alexandre de Moraes, no dia 15 daquele mês e ano, de retirar o sigilo sobre 27 depoimentos colhidos pela Polícia Federal na investigação da trama golpista havida no final do governo anterior, cujos ecos fizeram-se ouvir no 8 de janeiro de 2023, já depois da posse do atual presidente. Essa decisão de Moraes foi tomada nove meses depois do TSE já haver decidido (em junho de 23) pela inelegibilidade do ex-presidente para as eleições de 2026.

A expectativa, então, era a de que a divulgação das gravações piorasse – como de fato piorou – a situação judicial de Bolsonaro, com a sua interdição eleitoral imediata, decretada pelo TSE, evoluindo para uma punição mais abrangente que, face à sua idade, significasse o seu afastamento definitivo da vida pública. Derivada dessa expectativa, confirmada agora em 2025, firmava-se uma segunda, de que esse destino judicial de Bolsonaro tivesse forte influência sobre o comportamento da parte do eleitorado que havia votado nele em 2018 e 2022.

Naquele contexto, a declaração de Lula relativizava essa presumível reversão. Sugeria que, apesar do rumo do processo judicial, a influência pessoal de Bolsonaro seguiria sendo eleitoralmente decisiva no embate plebiscitário entre os dois líderes e em comparações entre seus governos. No dia seguinte à declaração, esta coluna comentou-a (O golpismo em ato de Bolsonaro e a narrativa eleitoral de Lula -16.03.2024), interpretando que o presidente parecia raciocinar com duas hipóteses. A primeira (que o próprio Lula devia considerar improvável), de uma comoção política relevante no campo de apoio ao rival levar, às pesquisas de opinião e mesmo às ruas, a solidariedade a ele e a protestos contra o processo judicial, mostrando a efetividade maior da polarização personalista. A segunda hipótese seria a da orfandade do eleitorado bolsonarista, que oposições partidárias não seriam capazes de resolver, pela mesma razão, ou seja, a circunscrição do protagonismo eleitoral a dois personagens. Essa segunda hipótese permitiria a Lula sonhar com um cenário semelhante ao do seu segundo governo, durante o qual a oposição não tinha condições de desafiar eleitoralmente a situação.

No mesmo artigo esta coluna cogitava outras duas hipóteses que poderiam desmentir o diagnóstico da personificação calcificada da polarização política. A terceira – mais provável que a quarta – seria a extrema-direita ter que aceitar um papel coadjuvante de apoio a uma forte candidatura oposicionista de direita e centro-direita, que poderia ser, por exemplo, a do governador Tarcísio de Freitas. A outra, improvável, seria um centro democrático – então, como ainda hoje, presente no governo - desistir da coadjuvância que o tem anulado como força política e disputar o apoio da centro-direita, retomando a trilha abandonada da candidatura de Simone Tebet em 2022, mesmo não sendo mais ela a candidata. 

Um ano e meio após a fala presidencial ao SBT, a quarta hipótese (da terceira via, mesmo batizada com novo nome) segue muito improvável e a primeira (a do apoio ativo e massivo ao retorno de Bolsonaro à cena), descartável, apesar dos esforços atrapalhados do seu filho “exilado” nos EUA. O atual cenário eleitoral é ainda turvo, mas oscila entre o sonho de Lula de remover óbices à sua reeleição manejando a própria ambiguidade e a incapacidade da oposição de ser relevante sem Bolsonaro, OU a constituição de uma unidade oposicionista capaz de criar um campo político com dinâmica de aliança de raposas, apostando na ambiguidade sem carisma para desafiar o presidente talvez já no primeiro e mais provavelmente no segundo turno. Ou seja, oscila entre um freezer ligado na função conservação e um forno que funciona por micro-ondas, sem fósforos.

No primeiro caso, a tese da centralidade das duas personalidades carismáticas na política brasileira sobreviveria ao menos a 2026. No segundo caso, já teria início uma transição a uma dinâmica eleitoral pela qual o eleitorado passaria a escolher, gradualmente, entre campos políticos. É entre essas duas hipóteses que se armam e se executam hoje, respectivamente, as estratégias eleitorais no governo e na oposição. O quadro pode ser resumido como uma polarização entre Lula e a direita, pela qual o “centro” é um grande ausente, cuja marca simpática é disputada por ambos os polos. Por que essa disputa ocorre, se o centro é fraco?

A maioria das análises, centrada em fatores de comportamento eleitoral, argumenta que o eleitorado “de centro” é disputado e tende a ser cortejado, apesar de ser muito pouco numeroso, porque é fiel da balança entre dois grandes conglomerados de eleitores situados “à direita” e “à esquerda” do espectro político. O cientista político Felipe Nunes tem dado especial ênfase a esse diagnóstico, amparando-o pedagogicamente em números que, grosso modo, são: cerca de 35% do conglomerado à direita, 35% do conglomerado à esquerda, cerca de 20% de eleitores que tendem a se abster, sobrando 10% de eleitores, metade dos quais podem ser chamados de centro (ele chama de liberais sociais). É o equilíbrio de peso eleitoral dos dois polos que tornaria o comportamento eleitoral desse pequeno grupo intermediário decisivo na eleição, como ocorreu em 2022. A repetição de mais ou menos o mesmo quadro quatro anos depois expressaria uma “calcificação” das preferências eleitorais no Brasil.

Quanto ao campo da “grande direita”, a tese de Nunes já merecia uma atualização e talvez uma ressalva, pelo menos desde que ficou claro, não apenas o alijamento de Bolsonaro da disputa de 2026 como a sua condenação judicial severa. Ela é por si só indutora do seu isolamento imediato na política institucional, com previsível desdobramento sobre o eleitorado, exceto no pequeno núcleo formado por seus seguidores engajados.

No caso do eleitor de centro-esquerda, a ideia de calcificação ampara-se no fato de que, nesse campo, a intenção de voto em Lula deriva automaticamente da rejeição radical ao bolsonarismo, por ser percebida como única opção ao “retorno da extrema-direita ao governo”. Essa leitura tem muito apelo eleitoral e diante da conjuntura política mais recente, mais radicalizada, a calcificação nesse campo tende até a aumentar. Mas a recíproca não é tão evidente quando se pode ver uma disputa em aberto no campo do eleitor polarizado pela direita e pela centro-direita, para o qual, bom ou ruim, Bolsonaro era visto antes também como única opção do antilulismo. Nesse campo, não é de hoje que a percepção de uma redefinição no mínimo concorre com a de calcificação. A nova rodada de pesquisas do próprio instituto Quaest, dirigido por Nunes, parece reforçar essa percepção. Novos dados analisados sugerem que as percepções do eleitorado da "grande direita" estão em movimento.

Esse movimento, que começa a romper a bolha da avaliação fortemente negativa do desempenho do presidente e do governo. resultará também em deslocamento equivalente e consistente de intenções de voto a ponto de permitir a Lula um patamar eleitoral superior ao de 2022? Ou resultará em diversificação do voto de oposição, abrindo caminho a um êxito eleitoral de uma oposição com programa moderado, numa disputa em dois turnos? No âmbito de prognósticos de comportamento eleitoral é impossível responder agora a essa pergunta.

Pesquisas com foco deslocado do comportamento eleitoral para “atitudes políticas” mais abrangentes e permanentes dos eleitores podem oferecer outros parâmetros e outro viés de análise. Parâmetros e viés que se afastam ainda mais da pretensão de fazer prognósticos eleitorais imediatos porque não permitem sequer mapear intenções de voto atuais, as conhecidas “fotografias de momento”. Mas podem dar pistas sobre que tipos de discurso e argumentação política podem fazer diferença ao poderem sensibilizar (ou mesmo descalcificar) comportamentos eleitorais a longo, médio ou curto prazo, a depender de condições objetivas e subjetivas de lideranças e grupos políticos de prestarem devida atenção a essas pistas, mobilizarem a orientarem recursos materiais e políticos em sintonia com elas, 

Artigo de ontem do cientista político Pablo Ortellado (O Brasil dos invisíveis – O Globo 10.10.2025) reflete de maneira instigante sobre uma pesquisa dessa natureza, da organização civil internacional More in Common. Trata-se de dados sobre o que se pode chamar de atitudes políticas de seis segmentos, batizados de “patriotas indignados” (os últimos fatos devem recomendar a mudança dessa etiqueta) e “progressistas militantes”, dois segmentos antagônicos e fortemente engajados à direita e à esquerda; “conservadores tradicionais” e “esquerda tradicional” (segmentos que possuem menos engajamento mas com identificação razoavelmente visível como direita e esquerda, embora mais por afinidades do que por coesão e homogeneidade); por fim, os “desengajados” e os “cautelosos”, que seriam os mais invisíveis, não sendo possível qualifica-los, nitidamente, como direita ou esquerda.  Os dois extremos antagônicos são os mais visíveis e ruidosos e os menos numerosos, alcançando, cada um cerca de 5% do universo pesquisado. Já os dois últimos segmentos (dos invisíveis) são os mais numerosos, expressando, cada qual, 27% do mesmo universo.

O que se salienta como intrigante não é a existência desses segmentos de invisíveis que, somados, constituem algo com sentido aproximado ao que sempre se chamou de “maioria silenciosa.” O que impressiona é que essa maioria não seja apenas relativa, nem metafórica, no sentido de que se presuma ser expressão passiva de um senso comum. Ela é numericamente absoluta num contexto fartamente analisado como de forte polarização política (originária do mundo político, onde é evidente e quase sempre crescente, há 11 anos) que já teria transbordado para o mundo social não só em forma de polarização política, mas também “afetiva”.   

O entendimento que pude ter a partir do artigo de Ortellado é de que não se trata de uma pesquisa que permita fazer diagnóstico, estimativas ou mesmo hipóteses ou ilações sobre comportamento eleitoral dos brasileiros. Entendi que é uma fotografia do que costumamos chamar de atitude política dos cidadãos, os quais também são eleitores. Assim, cada um dos seis segmentos (exceto talvez os dois extremos) não deve ser entendido de modo preciso como direita ou esquerda e menos ainda como formado por pessoas que votam e/ou devem votar num campo ou em outro. Os fatores que influenciam o comportamento eleitoral tendem a ser mais contingentes e não necessariamente respeitam as demarcações relativas a atitudes políticas, que são disposições permanentes.

Além de ser expressiva, como diagnóstico, a maioria de invisíveis resilientes aos apelos polarizantes de supostos polos - que não se revelam, de fato, polarizadores - o que me parece, à primeira vista, muito significativo nessa pesquisa é a conclusão que Ortellado ressalta no parágrafo final do seu texto e que a editoria converteu em epígrafe: “sob as ruidosas e intolerantes guerras culturais, resiste um substrato majoritário, comedido e independente”. A segmentação de atitudes presentes no eleitorado, tal como apresentada, evidencia fortes disposições a reagir positivamente a mensagens moderadas que facções da elite política possam vir a emitir durante competições eleitorais majoritárias, incluindo e indo além de 2026. Como, aliás, ocorreu em eleições subnacionais em 2020, 2022 e 2024 e, de certa maneira, deu a Lula a vitória, na presidencial de 2022.

Claro que um ator político com a experiência no ramo e a habilidade pessoal de Lula pode, em tese, dispensar limões azedos e tentar fazer uma limonada refrescante, como fez para se eleger em 2002. Mas diante do que acontece na política brasileira desde 2013/2014 e das ambiguidades de Lula 3 entre hegemonismo esquerdista e aceitação de uma frente plural, essa doce possibilidade exigirá um esforço incomum, um giro que seria dispensado, no caso de uma candidatura de oposição genuinamente detentora dessa atitude moderada. Achado que também não parece fácil de se conseguir nas fileiras externas ao governo.

A pesquisa a meu ver mostra que se tal candidatura não surgiu ou não surgirá, os motivos não são inclinações "impolíticas" do eleitorado. Talvez estejam mais nas bocas tortas dos partidos e lideranças políticas de um centro que não encontra tradução empírica porque cedeu à linguagem dos polos, que é socialmente minoritária, mas tornou-se língua franca na sociedade política. Não se trata, portanto, de opor de modo pseudo-realista, razões da pequena política para desprezar, como se fosse um adorno acadêmico, esse panorama atitudinal dos brasileiros comuns. Trata-se de atuar na pequena política, sim, sem desprezá-la, mas sintonizando-a com essa predisposição gritante do demos. É a bola do realismo democrático que surge na área pedindo para ser chutada.

Quem pode fazer isso são segmentos da elite política que, se tomada a decisão de representar essa disposição, têm acesso a meios materiais e institucionais de fazê-la migrar das pesquisas para o terreno dos fatos políticos.

Riscos sobram, mas chances não faltam. Acredito que se trata de um problema de ação coletiva de difícil resolução. Mas sua não solução deriva do reino da impotência política e não do da impossibilidade.

O improvável promissor

No plano da conjuntura não há como esperar protagonismo da esquerda, a não ser a sua simbólica amarração ao destino político de Lula. No outro plano é que se trata, para ela ou outra que a substitua, de buscar linhas de pensamento que amparem algum tipo de protagonismo no futuro. Em 2026, para quem tem atitude progressista, mas não deseja seguir a caravana lulista, o problema é ter em quem votar e fazer campanha no primeiro turno. No máximo, o script Tebet, sob outra encarnação, mais antenada a demandas conservadoras.

Uma campanha que deixe como legado para ser desenvolvido entre 2026 e 2030 o script que Tebet não seguiu de 2022 a 2025. Isso em tese será possível se houver espaço para trabalhar uma semântica alternativa à do confronto. Muito difícil fazer isso sem uma candidatura que seja firme e insista em veicular esse contraponto.

Para além da eleição, vale Millôr Fernandes: “livre pensar, é só pensar”. Se me permitem, quero fazer uma digressão para trazer à conversa a sequência chilena pós Pinochet: Aylwin, Eduardo Frei, Ricardo Lagos, Michele Bachelet. Um blend progressivo, seguido de alternância entre Bachelet e Pinera até chegarem a Boric.  Pode dar perda agora? Pode, sempre pode, é da natureza das coisas da política democrática. Mas pode não dar e mesmo se der, tende a não ser devastadora, como foi a queda de Allende. Uma concertação de forças precisa iniciar um processo de difusão de uma semântica política similar no Brasil.

O mesmo ponto, sob outro enquadramento, mais colado no que há e não tanto no que pode haver:  penso que nas circunstâncias de empobrecimento do debate político, não podemos querer omelete melhor que a polarização de 2026 ser a disputa pelo lugar de pacificador, mesmo que entre Lula e um Tarcísio de Freitas.

O pressuposto analítico aqui adotado é que pacificação não virá, nem via Lula, nem via Tarcísio, se eles forem as únicas opções sérias do jogo eleitoral de 2022. Em tempo: sérias e vencedoras não são palavras sinônimas.

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