Valor Econômico
Contrariar princípios liberais é socialmente
vergonhoso, algo como negar a lei da gravidade ou defender o terraplanismo
Industriais brasileiros parecem inclinados a
continuar atuando contra seus próprios interesses.
Vejamos a razão dessa frase inicial. Em maio
do ano passado, um texto com o título “A indústria fez gols contra por três décadas”
saiu neste espaço. Era o resumo de um trabalho acadêmico, depois transformado
em livro, do pesquisador, economista e vice-presidente do Conselho Regional de
Economia da São Paulo (Corecon-SP), Haroldo da Silva.
Há muitos trabalhos importantes sobre a
desindustrialização brasileira, mas esse revelou uma compreensão sociológica do
problema, além da econômica.
A pesquisa do professor Haroldo partiu de uma questão que o intrigava: por que o processo de desindustrialização no país foi tão intenso nos últimos 30 anos se nesse período houve uma atuação eficiente da Confederação Nacional da Indústria (CNI) na área legislativa?
De fato, o trabalho de “advocacy” da CNI,
legítimo, foi amplo e bem-sucedido no Congresso. De 1996 a 2021, conseguiu
incluir 3.165 projetos teoricamente em benefício do setor industrial na pauta
legislativa. Afinal, por que, então, a indústria definhou nesse período?
Haroldo investigou a questão durante quatro
anos e, no fim de 2023, apresentou sua tese de doutorado com a seguinte
conclusão: a atuação da CNI, cujas propostas tiveram alto índice de sucesso no
Congresso, acabou contrariando seus próprios interesses. Mas por quê?
A resposta do trabalho acadêmico pode ser
resumida em cinco palavras: “agenda liberal elevada ao paroxismo”, a ponto de
os próprios industriais trabalharem para prejudicar seus negócios. Sua atuação
reduziu incentivos produtivos, fortaleceu a abertura comercial ampla e
incentivou o rentismo. Na prática, a indústria sucumbiu à dominação do setor
financeiro, sem questionar o pensamento neoliberal globalmente dominante,
advindo do “Consenso de Washington” (1989). Contrariar esses princípios (quase
dogmas) era socialmente vergonhoso, algo como negar a lei da gravidade ou
defender o terraplanismo.
Segundo Haroldo, a dominação vinha travestida
de “cantilenas” como “reformas, reformas, infinitas reformas”, austeridade
fiscal, privatizações, redução do tamanho do Estado, flexibilização das leis
trabalhistas, abertura econômica e juros elevados”.
Essa agenda, segundo Haroldo, irrestrita e
ideologicamente cega, teria sido um importante elemento sociológico no processo
de desindustrialização brasileira.
Voltemos então à frase inicial, sobre a
inclinação industrial de atuar contra os próprios interesses. Semanas atrás, ao
anunciar seu plano de trabalho na Fiesp, o presidente eleito da entidade, Paulo
Skaf, que tomará posse em janeiro, revelou os nomes dos membros indicados para
o Conselho Superior de Economia da entidade. E avisou: “A visão da Fiesp, a
minha própria e de todos esses [conselheiros] é uma visão liberal. É natural,
nós não podemos esconder”.
Não se podem esperar, portanto, vindas da
Fiesp, apesar de bem-intencionadas, vozes um pouco menos liberais de líderes do
setor produtivo, como a de um Antônio Ermírio de Moraes (1928/2014), que certa
vez chamou os juros brasileiros de “pornográficos”, expressão repetida pelo
atual presidente da Fiesp, Josué Gomes da Silva. Hoje, até mesmo no governo
petista a narrativa sobre a necessidade da manutenção de uma taxa de 15% ao ano
é dominante, embora ela seja um desastre para a indústria e custe R$ 1 trilhão
por ano ao governo. Contrariá-la ou criticá-la são atitudes consideradas
desprezíveis.
Para presidir os liberais do conselho da
Fiesp, foi indicado o ex-presidente do Banco Central Roberto Campos Neto. Dois
ex-ministros de Jair Bolsonaro também receberam convites: Sergio Moro e Tereza
Cristina. Campos é um legítimo representante do setor financeiro - hoje
trabalha para o Nubank -, mas o instinto da nova direção da Fiesp parece
indicar que ele deverá atuar a favor da indústria.
Após aceitar o convite de Skaf, Campos Neto
sugeriu que será preciso “encontrar soluções privadas para problemas públicos”
e defendeu uma “grande reforma fiscal do lado dos gastos” do governo.
As propostas de Campos Neto são neoliberais
e, vale lembrar, contrariam frontalmente as de Roberto Simonsen (1889-1948), o
mais importante pensador brasileiro do setor industrial, que presidiu a Fiesp e
a CNI. Simonsen propunha uma industrialização sob liderança do Estado a partir
de uma planificação de nova estrutura econômica.
Campos Neto disse que medidas duras e
impopulares são necessárias: “Só entraremos em um ciclo de crescimento
sustentável com sacrifício; é importante o setor produtivo estar aberto a esse
debate”.
Ele não disse de quem seria o sacrifício, mas
as dores das medidas duras que propõe certamente atingiriam menos o setor
financeiro e mais a indústria e seus trabalhadores. Daí os gols contra.
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