O Globo
Em Gaza, e certamente nos túneis e
esconderijos em que foram mantidos os reféns sequestrados, reina o abismo de um
silêncio que grita
A história de países que travam guerras sempre foi generosa com combatentes considerados heroicos. Ao final da sangria, multiplicam-se condecorações, memoriais, reconhecimento, homenagens. Historiadores também se desdobram para identificar quem tombou por último, quando morrer fardado já não seria mais preciso. Quem estuda a Guerra do Vietnã acaba trombando com a existência de um coronel americano perfeitamente esquecível, William Nolde. O oficial só saiu do anonimato por ter sido o último combatente dos Estados Unidos a morrer naquele conflito — míseras 11 horas antes da entrada em vigor do cessar-fogo de 1975. Na Segunda Guerra Mundial fora a vez de Charley Havlat fazer história como último soldado dos Aliados a tombar na Europa. Seu pelotão havia sido cercado por uma unidade de tanques alemães, e Havlat morreu com um tiro na cabeça dez minutos antes de a Wehrmacht receber ordens de cessar-fogo imediato. Ainda era de manhã naquele 7 de maio de 1945. Sete horas depois, a Alemanha de Hitler se rendia formalmente em Reims.
O atual cessar-fogo em Gaza, turbinado na
semana passada pelo presidente Donald Trump,
se anuncia diferente. Mesmo que a cessação do horror ultrapasse a fase inicial
acordada entre Israel e Hamas, se estendendo às etapas mais espinhosas de
autonomia, desmilitarização, governança, reconstrução e fim da ocupação da
faixa, dificilmente se poderá apontar qualquer herói militar nesta guerra. Ela
terá sido por demais amoral. Somente a população civil de Gaza e os reféns
ainda vivos entre os 250 sequestrados no ataque terrorista do 7 de outubro de
2023 deveriam ter prioridade de fala sobre quem somos e o que fizemos.
Não será fácil.
— Palavras são acontecimentos, elas agem,
alteram coisas, transformam quem fala e quem ouve. Elas alimentam compreensão e
emoção... são catedrais portáteis — escreveu Ursula K. Le Guin num ensaio sobre
a extraordinária força do conversar humano.
Para a escritora Taqwa Ahmed Al-Wawi, porém,
assim como para o restante da população de Gaza e para os reféns sequestrados
há dois anos e cinco dias pelo Hamas, esse desfrute foi roubado. Terão de
reaprender o uso da palavra. Em recente edição da centenária revista
progressista The Nation, a jovem de19 anos publicou um texto impactante sobre a
gradual perda da capacidade de falar dos humanos de Gaza — um silenciamento tão
profundo que se tornou físico:
— É a sensação de estar silenciado de dentro
para fora. Sinto como se minha paisagem interna estivesse encoberta, e navegar
até mesmo por conversas simples ou expressar minhas necessidades se torna
exaustivo. Toda tentativa de falar em voz alta exige, antes, romper uma
barreira invisível. A frustração de estar presa na minha própria mente é
esmagadora. O que enfrentamos é o colapso do sistema simbólico que a linguagem
representa. A comunicação parece não apenas impossível, mas inconcebível.
Em seu relato, a jovem palestina evoca o que
psicólogos chamam de “entorpecimento emocional” ou “embotamento psicológico” diante
da exposição prolongada a destruição, violência e perda.
— Vivemos isso diariamente: uma incapacidade
persistente de evocar as palavras certas, como se nosso vocabulário tivesse
sido reduzido. Ficamos em silêncio porque nossas mentes e corpos estão exaustos
demais para carregar a linguagem — explica ela.
Palavras como “lar”, “amigo”, “normal” se
transformaram em cascas vazias de sentido, e o léxico despedaçado reflete
justamente a realidade destruída. Para Taqwa, a linguagem, antes um arquivo
vivo da experiência humana, agora luta para acompanhar uma destruição tão vasta
a ponto de apagar o próprio significado das palavras. Em Gaza, e certamente nos
túneis e esconderijos em que foram mantidos os reféns sequestrados, reina o
abismo de um silêncio que grita. Uma das passagens mais tocantes do relato
publicado trata da linguagem alternativa, nascida de trauma, medo, dor e perda:
— Recorremos a outros veículos, o silêncio, a
linguagem dos nossos corpos, os laços não falados entre sobreviventes, não como
formas menores de expressão, mas como os únicos meios capazes de conter o que
não pode ser dito. Confiamos em sinais sutis e compreensões compartilhadas. Um
olhar, um toque, um gesto pode carregar volumes que as palavras não podem.
Pequenos atos de cuidado comunicam solidariedade. Falamos pela presença, não
pela fala; pelas ações, não pelas declarações. Às vezes é apenas o modo como
compartilhamos espaço em silêncio, sabendo que sentimos a mesma dor.
Outras linguagens não verbais, inacessíveis
para os reféns prisioneiros, têm florescido em meio à destruição de Gaza. A
autora cita murais de cores vívidas sobre escombros, desenhos de crianças
contendo sonhos, canções que surgem das cinzas, fios de memória, mãos que se
entrelaçam. E fala de sua própria resistência ao recorrer à escrita, na
tentativa desesperada de construir uma ponte com o mundo exterior. O silêncio
de Gaza é um chamado. Ouvir esse silêncio é reconhecer uma humanidade
compartilhada, estirada pela dor.
Taqwa está reaprendendo a falar. Ao mundo,
cabe aprender a ouvir silêncios. Nem tudo é apagável com um cessar-fogo.
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