O Estado de S. Paulo
Possível encontro é um passo decisivo para o
degelo da relação entre os dois países, que nunca esteve tão fria ao longo de
dois séculos
Possivelmente no domingo, em Kuala Lumpur, na
Malásia, Trump e Lula devem se encontrar. É um passo decisivo para o degelo da
relação entre os dois países, que nunca esteve tão fria ao longo de dois
séculos.
A perspectiva de Lula é a de anular as decisões norte-americanas que atingem o Brasil. Em primeiro lugar, fazer com que a absurda tarifa de 50% sobre nossos produtos baixe ao índice de 10%. Em segundo, convencer Trump a anular as medidas punitivas contra autoridades brasileiras, principalmente a Lei Magnitsky, aplicada ao ministro Alexandre de Moraes.
O processo de reaproximação, desde a
Conferência da ONU em setembro, caminha bem, a julgar pelas reuniões realizadas
e os depoimentos de diplomatas. Há várias perguntas, no entanto, que permanecem
no ar. Apenas retroceder nas medidas repressivas não é todo o horizonte das
relações bilaterais.
Brasil e EUA podem ir muito mais longe do que
estavam no momento em que Trump publicou aquela carta condenando o que chama de
“caça às bruxas” no processo contra Bolsonaro. Mas, antes de imaginar um
cenário positivo em que se anulem todas as medidas repressivas e se pense num
futuro mais rico para a relação entre os dois países, é preciso encarar outra
pedra no sapato: a ação militar norte-americana na Venezuela e a degradação das
relações entre EUA e Colômbia.
A presença norte-americana no Caribe, próximo
à costa da Venezuela, é ruidosa demais para que seja ignorada. São vários
navios de guerra, um submarino, helicópteros, aviões F-35 e 10 mil homens. Essa
configuração sugere que não haverá uma clássica invasão. Para isso, seriam
necessários, no mínimo, 250 mil homens. Mas certamente haverá ações pontuais
combinadas com a pressão sobre Maduro, cuja cabeça vale uma recompensa de US$
50 milhões.
Trump autorizou ações da CIA na Venezuela, o
que reforça o quadro de guerra psicológica, uma vez que agências de espionagem,
por uma questão elementar de segurança, não anunciam seus passos.
O Brasil tem 2.199 km de fronteira com a
Venezuela. Nos últimos meses, o Exército se preparou, com tropas em Pacaraima e
Bonfim, para evitar uma invasão da Guiana pela Venezuela. Isso não deverá
acontecer num futuro próximo. Mas a hipótese de conflitos armados é algo que
interessa ao Brasil e, certamente, à Colômbia, países que recebem os refugiados
venezuelanos.
As relações do Brasil com a Venezuela
esfriaram depois das eleições. Ao lado da Colômbia e do México, o Brasil pediu
as atas das eleições para avaliar a suposta vitória de Maduro. Essas atas nunca
apareceram. O problema é que nas atuais circunstâncias é difícil para o Brasil
mediar algo. Menos ainda a Colômbia, que caiu também na mira de Trump.
A crise na Venezuela se estendeu muito
rapidamente à Colômbia por causa também de sua origem: combate ao tráfico de
drogas.
Alguns barcos já foram afundados no Caribe
pelos navios americanos. Vemos as imagens do fogaréu, mas nunca sabemos se
havia mesmo drogas e traficantes a bordo, porque até agora apenas dois
tripulantes sobreviveram. A Colômbia tentou esboçar um protesto, mas isso só
agravou as relações com os EUA, que já não eram boas.
Logo no início do novo mandato de Trump,
Gustavo Petro se recusou a receber um avião de emigrantes expulsos dos EUA.
Acabou voltando atrás, sob pressão americana. A divergência entre eles se
agravou em setembro. Petro aproveitou sua passagem pela Assembleia da ONU e
participou de uma manifestação de rua pró-Palestina. Empunhando um megafone,
aconselhou os soldados americanos a não seguirem as ordens de seus superiores.
Um lance ousado, que lhe valeu a perda do visto de entrada nos EUA e, agora,
uma acusação de Trump de que é ligado ao tráfico de drogas, assim como Maduro.
Trump decidiu também cortar toda a ajuda à
Colômbia. Os países foram grandes parceiros no passado. O Plano Colômbia,
firmado por Bill Clinton e Andrés Pastrana, investiu US$ 10 bilhões na
repressão ao tráfico de drogas e às guerrilhas. Conseguiu alguma coisa com as
guerrilhas, mas o tráfico de drogas soube se adaptar, e o país continua sendo o
maior produtor mundial.
Numa das minhas viagens a Tabatinga (Brasil)
e a Leticia (Colômbia), pude constatar que o Exército colombiano parece mais bem
equipado do que o brasileiro, e isso é resultado do Plano Colômbia, que
modernizou não só o Exército, mas também a polícia.
Tanto a crise já aberta na Venezuela quanto
as divergências entre EUA e Colômbia devem se agravar. Trump define os dois
presidentes como aliados do narcotráfico e parece voltar o poderio militar
norte-americano para a América do Sul, inaugurando uma nova versão de guerra às
drogas.
Lula certamente não ignora esses movimentos e
já se manifestou contra intervenções militares. Será um grande exercício de
abstração deixar de lado esse tema, sobretudo o caso da Venezuela, neste
encontro em Kuala Lumpur.
Talvez a distância da Malásia para o cenário
dos problemas ajude, e aconteça o que alguns diplomatas querem: uma discussão
concentrada em trocas comerciais.
Mas será um grande esforço tanto de Trump,
que não ignora a vizinhança entre Brasil e Venezuela, quanto de Lula, que já
intuiu o tamanho do problema para o nosso país, vendo a guerra chegar às suas
fronteiras.

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