sexta-feira, 24 de outubro de 2025

Trump e Lula em Kuala Lumpur, por Fernando Gabeira

O Estado de S. Paulo

Possível encontro é um passo decisivo para o degelo da relação entre os dois países, que nunca esteve tão fria ao longo de dois séculos

Possivelmente no domingo, em Kuala Lumpur, na Malásia, Trump e Lula devem se encontrar. É um passo decisivo para o degelo da relação entre os dois países, que nunca esteve tão fria ao longo de dois séculos.

A perspectiva de Lula é a de anular as decisões norte-americanas que atingem o Brasil. Em primeiro lugar, fazer com que a absurda tarifa de 50% sobre nossos produtos baixe ao índice de 10%. Em segundo, convencer Trump a anular as medidas punitivas contra autoridades brasileiras, principalmente a Lei Magnitsky, aplicada ao ministro Alexandre de Moraes.

O processo de reaproximação, desde a Conferência da ONU em setembro, caminha bem, a julgar pelas reuniões realizadas e os depoimentos de diplomatas. Há várias perguntas, no entanto, que permanecem no ar. Apenas retroceder nas medidas repressivas não é todo o horizonte das relações bilaterais.

Brasil e EUA podem ir muito mais longe do que estavam no momento em que Trump publicou aquela carta condenando o que chama de “caça às bruxas” no processo contra Bolsonaro. Mas, antes de imaginar um cenário positivo em que se anulem todas as medidas repressivas e se pense num futuro mais rico para a relação entre os dois países, é preciso encarar outra pedra no sapato: a ação militar norte-americana na Venezuela e a degradação das relações entre EUA e Colômbia.

A presença norte-americana no Caribe, próximo à costa da Venezuela, é ruidosa demais para que seja ignorada. São vários navios de guerra, um submarino, helicópteros, aviões F-35 e 10 mil homens. Essa configuração sugere que não haverá uma clássica invasão. Para isso, seriam necessários, no mínimo, 250 mil homens. Mas certamente haverá ações pontuais combinadas com a pressão sobre Maduro, cuja cabeça vale uma recompensa de US$ 50 milhões.

Trump autorizou ações da CIA na Venezuela, o que reforça o quadro de guerra psicológica, uma vez que agências de espionagem, por uma questão elementar de segurança, não anunciam seus passos.

O Brasil tem 2.199 km de fronteira com a Venezuela. Nos últimos meses, o Exército se preparou, com tropas em Pacaraima e Bonfim, para evitar uma invasão da Guiana pela Venezuela. Isso não deverá acontecer num futuro próximo. Mas a hipótese de conflitos armados é algo que interessa ao Brasil e, certamente, à Colômbia, países que recebem os refugiados venezuelanos.

As relações do Brasil com a Venezuela esfriaram depois das eleições. Ao lado da Colômbia e do México, o Brasil pediu as atas das eleições para avaliar a suposta vitória de Maduro. Essas atas nunca apareceram. O problema é que nas atuais circunstâncias é difícil para o Brasil mediar algo. Menos ainda a Colômbia, que caiu também na mira de Trump.

A crise na Venezuela se estendeu muito rapidamente à Colômbia por causa também de sua origem: combate ao tráfico de drogas.

Alguns barcos já foram afundados no Caribe pelos navios americanos. Vemos as imagens do fogaréu, mas nunca sabemos se havia mesmo drogas e traficantes a bordo, porque até agora apenas dois tripulantes sobreviveram. A Colômbia tentou esboçar um protesto, mas isso só agravou as relações com os EUA, que já não eram boas.

Logo no início do novo mandato de Trump, Gustavo Petro se recusou a receber um avião de emigrantes expulsos dos EUA. Acabou voltando atrás, sob pressão americana. A divergência entre eles se agravou em setembro. Petro aproveitou sua passagem pela Assembleia da ONU e participou de uma manifestação de rua pró-Palestina. Empunhando um megafone, aconselhou os soldados americanos a não seguirem as ordens de seus superiores. Um lance ousado, que lhe valeu a perda do visto de entrada nos EUA e, agora, uma acusação de Trump de que é ligado ao tráfico de drogas, assim como Maduro.

Trump decidiu também cortar toda a ajuda à Colômbia. Os países foram grandes parceiros no passado. O Plano Colômbia, firmado por Bill Clinton e Andrés Pastrana, investiu US$ 10 bilhões na repressão ao tráfico de drogas e às guerrilhas. Conseguiu alguma coisa com as guerrilhas, mas o tráfico de drogas soube se adaptar, e o país continua sendo o maior produtor mundial.

Numa das minhas viagens a Tabatinga (Brasil) e a Leticia (Colômbia), pude constatar que o Exército colombiano parece mais bem equipado do que o brasileiro, e isso é resultado do Plano Colômbia, que modernizou não só o Exército, mas também a polícia.

Tanto a crise já aberta na Venezuela quanto as divergências entre EUA e Colômbia devem se agravar. Trump define os dois presidentes como aliados do narcotráfico e parece voltar o poderio militar norte-americano para a América do Sul, inaugurando uma nova versão de guerra às drogas.

Lula certamente não ignora esses movimentos e já se manifestou contra intervenções militares. Será um grande exercício de abstração deixar de lado esse tema, sobretudo o caso da Venezuela, neste encontro em Kuala Lumpur.

Talvez a distância da Malásia para o cenário dos problemas ajude, e aconteça o que alguns diplomatas querem: uma discussão concentrada em trocas comerciais.

Mas será um grande esforço tanto de Trump, que não ignora a vizinhança entre Brasil e Venezuela, quanto de Lula, que já intuiu o tamanho do problema para o nosso país, vendo a guerra chegar às suas fronteiras.

 

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