sábado, 8 de novembro de 2025

A primeira classe também cai, por Bolívar Lamounier

O Estado de S. Paulo

Os economistas talvez nos possam dizer quanto nos falta para vislumbrar, num cinzento horizonte, o espectro da guerra civil

Os acontecimentos do dia 28 de outubro no Rio de Janeiro só nos deixam uma certeza: hoje, o País é outro; seu nível de conflito não voltará a ser o que era antes.

Repare, prezado leitor, que não estou aqui reeditando minhas elucubrações, que sei serem ardidas. Estou propondo uma simples constatação: a primeira classe também cai. Não estou afirmando que o avião vai cair.

Seria, entretanto, ingenuidade ignorar que aquela fileira de corpos estendida no chão é um marco macabro em nossa história. Designem-na como matança, como violência excessiva, como repressão policial indispensável à bandidagem organizada – como quiserem –, mas ao mesmo tempo e acima de tudo isso ela é o que escrevo acima: um marco macabro em nossa história. Os “arrastões” de Copacabana, casos de turistas assassinados à faca, tudo isso foi também fotografado e as fotos correram o mundo, muitas vezes implicando o cancelamento de centenas de reservas nos hotéis cariocas. Mas as reservas sempre voltaram. Penso que voltarão desta vez também, mas com uma aura, um halo, uma atmosfera psicológica diferente, que só se modificará se todos os protagonistas agirem com sensatez, construindo bases mais seguras para a paz social.

Nunca é demais lembrar que a violência na zona sul do Rio pode ser datada com precisão. Foi no início da década de 70 do século passado. Até então, nos fins de semana, sempre víamos centenas de Fuscas mansamente estacionados em Copacabana ou Ipanema, muitas vezes destrancados. Eu mesmo me lembro do primeiro dia em que, ao me dirigir ao veículo, notei que a porta estava aberta. Em seguida, percebi que minha carteira não estava onde eu a deixara. Encontrei-a sob o carro. Os ladrões me haviam feito a gentileza de levar somente o dinheiro, deixando a carteira e os documentos.

Naquela época, eu e uma namoradinha tínhamos o hábito de ir à sessão das dez no Paissandu, uma espelunca com duras cadeiras de madeira, onde assistíamos com indizível deleite à última maravilha da nouvelle vague. Godard, La Chinoise, oh, que maravilha! Depois comíamos uma pizza e caminhávamos tranquilamente para a zona sul, certos de que este, como sentenciou Pangloss, personagem de Voltaire, era, com certeza, “o melhor dos mundos possíveis”.

Naquela mesma época, o senador Franco Montoro e o governador Paulo Maluf impostavam suas vozes para a parte musical do programa. O primeiro apontava a pobreza como causa da criminalidade que preocupava cada vez mais, o segundo contraponteava que “bandido bom é bandido preso”. As Forças Armadas ocupavam-se das quatro ou cinco dúzias de jovens que imaginaram derrubar pela força o regime militar. Enquanto isso, com as fronteiras abertas, o embrião do que hoje denominamos crime organizado vinha tranquilamente do Paraguai, com fuzis e carregamentos de drogas.

Agora, como comecei a dizer, não temos o dom de adivinhar o futuro, mas estejamos certos de que estamos em outro país, outro mundo. O idílico que nós, nossos poetas e escritores e talvez uma parte de nossas polícias alimentávamos deixou de ser uma boa hipótese de trabalho. Primeiro, porque a bandidagem organizada não está chegando como turistas pela fronteira paraguaia: ela está aqui há muito tempo, bem instalada, não só em São Paulo e no Rio de Janeiro. Segundo, porque a oferta da droga expandiu seu outrora modesto mercado. Como disse Lula, em momento de rara criatividade, ela transformou os bandidos em reféns, ou vice-versa, como prefiram.

Cair, como lhes garanti, o avião não caiu. Continua voando e recrutando “aviõezinhos”, aqueles adolescentes que têm em suas cadernetas os endereços onde devem entregar os pacotinhos. Não sou do ramo, mas suponho que deva ser mais lucrativo e excitante do que frequentar uma escola de qualidade apenas razoável para depois procurar emprego num banco ou numa casa comercial. Mais alguns anos e esses mesmos “aviõezinhos” terão aprendido a manejar um revólver. Esse será seu grande rito de passagem. O salto da mera condição de entregador para o status de “macho”. Um quase membro efetivo da turma adulta.

Podemos estar certos de que o avião não vai cair? Essa questão transcende meu suposto âmbito de competência. Consultemos os economistas. Eles é que talvez nos possam dizer quanto tempo será preciso, com nossa renda anual por habitante crescendo a uma média de dois e meio por cento anuais, quanto nos falta para vislumbrar, num cinzento horizonte, o espectro da guerra civil.

Por enquanto, o que temos não é tão grave. Lá em cima, uma minúscula minoria bronzeia-se nos conveses de seus veleiros. Abaixo deles, uma camada bem maior, talvez metade da população, não tem do que se queixar. Dispõe do suficiente para um pulo anual a Miami ou à Patagônia ou para manter uma modesta casa de campo. Os 30% inferiores, claro, levam uma vida mais dura, mas terão do que viver enquanto, revirando as latas de lixo, encontrarem algo que lhes sirva para o banquete noturno.

Calma, pois, senhoras e senhores da primeira classe! Tudo faz crer que continuamos em céu de brigadeiro.

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