Folha de S. Paulo
Italianos promoveram 'safári humano' para
matar civis na guerra da Bósnia
A banalidade do mal, explicação de Hannah
Arendt sobre Eichmann, parece então mais espantosa, pois acontece fora da
máquina histórica de destruição nazifascista
Há fatos em que a reação da imprensa pode parecer tão chocante quanto os acontecimentos relatados. É o caso da investigação da Procuradoria de Milão sobre turistas italianos de "safáris humanos" durante o cerco de Sarajevo. Civis desarmados, incluindo crianças, eram vítimas de milionários que viajavam à região para praticar "tiro ao alvo humano". O acontecimento, lápide definitiva sobre quaisquer ilusões de humanidade em camadas ditas superiores da sociedade europeia, recebeu tratamento editorial secundário em jornais e televisões.
O contexto global foi o conflito na Bósnia e Herzegovina entre sérvios (cristãos ortodoxos),
croatas (católicos romanos) e bósnios (muçulmanos). Em três anos e meio
(1992-1995), a Guerra da Bósnia deixou cerca de 100 mil mortos. Mas o que agora
retorna como foco de uma investigação transcorreu durante o cerco da cidade
bósnia de Sarajevo pelos sérvios. Estes eram anfitriões dos cerca
de 100 milionários italianos, empresários na maioria, que pagavam o equivalente
a R$ 600 mil para assassinar civis indefesos nas ruas. O preço subia se as
vítimas fossem crianças.
A banalidade do mal, explicação de Hannah
Arendt sobre Eichmann, parece então mais espantosa, pois acontece fora da
máquina histórica de destruição nazifascista. O conceito não dá conta do
"fascismo que está em nós, que possui os nossos espíritos e as nossas
condutas" (Michel Foucault em "Introdução à Vida Não
Fascista"). De fato, o paradigma da análise antifascista não contempla
almas e corpos, ou seja, as pulsões sadomasoquistas. Não está nas ideias, mas
nos processos de subjetivação, a lógica de funcionamento da monstruosidade que
extravasou da Europa para
o mundo.
O que vem acontecendo é o retorno do que
sempre esteve aí como um bicho de muitas cabeças à espreita. O impulso bipolar
de destruir, autodestruindo-se, característica essencial da fenomenologia
fascista, permanece ativo no refluxo contemporâneo dos movimentos de direita.
Está presente no trumpismo, é desde o começo motor do bolsonarismo. Exaltação de
um líder e desejo de morte contra inimigos fabricados, forças constituintes
da ultradireita, são letras renovadas da cartilha do terror.
O turismo de guerra sérvio é capítulo de um
genocídio inseparável da psicopatologia fascista. Esta, por sua vez, não é
variável, dependente de poderes como partido, exército, indústria e burocracia,
pois ocupa a centralidade das posições em torno do ponto cego do porquê as
massas se submetem a uma ordem cuja transcendência não é a vida, mas a morte.
Torna-se assim viável a suspeita de um
vórtice não histórico em que se precipita a história moderna, com projeções
identificativas das massas sobre atores-monstros carismáticos, como seres das
trevas que absorvem o instinto de morte dos fiéis e trocam direitos individuais
por uma suposta forma superior de humanidade, uma classe, uma raça, uma casta
guerreira. Hitler, Mussolini, Stálin, Putin, Trump e
até o penoso Bolsonaro foram e são monstros da vez. Pistas
explicativas para o direito de caça a humanos. Mas nada explica por que essa
barbaridade não chegou às manchetes mundiais.

Nenhum comentário:
Postar um comentário
Observação: somente um membro deste blog pode postar um comentário.