domingo, 23 de novembro de 2025

As manchetes ausentes de um genocídio, por Muniz Sodré

Folha de S. Paulo

Italianos promoveram 'safári humano' para matar civis na guerra da Bósnia

A banalidade do mal, explicação de Hannah Arendt sobre Eichmann, parece então mais espantosa, pois acontece fora da máquina histórica de destruição nazifascista

Há fatos em que a reação da imprensa pode parecer tão chocante quanto os acontecimentos relatados. É o caso da investigação da Procuradoria de Milão sobre turistas italianos de "safáris humanos" durante o cerco de Sarajevo. Civis desarmados, incluindo crianças, eram vítimas de milionários que viajavam à região para praticar "tiro ao alvo humano". O acontecimento, lápide definitiva sobre quaisquer ilusões de humanidade em camadas ditas superiores da sociedade europeia, recebeu tratamento editorial secundário em jornais e televisões.

O contexto global foi o conflito na Bósnia e Herzegovina entre sérvios (cristãos ortodoxos), croatas (católicos romanos) e bósnios (muçulmanos). Em três anos e meio (1992-1995), a Guerra da Bósnia deixou cerca de 100 mil mortos. Mas o que agora retorna como foco de uma investigação transcorreu durante o cerco da cidade bósnia de Sarajevo pelos sérvios. Estes eram anfitriões dos cerca de 100 milionários italianos, empresários na maioria, que pagavam o equivalente a R$ 600 mil para assassinar civis indefesos nas ruas. O preço subia se as vítimas fossem crianças.

A banalidade do mal, explicação de Hannah Arendt sobre Eichmann, parece então mais espantosa, pois acontece fora da máquina histórica de destruição nazifascista. O conceito não dá conta do "fascismo que está em nós, que possui os nossos espíritos e as nossas condutas" (Michel Foucault em "Introdução à Vida Não Fascista"). De fato, o paradigma da análise antifascista não contempla almas e corpos, ou seja, as pulsões sadomasoquistas. Não está nas ideias, mas nos processos de subjetivação, a lógica de funcionamento da monstruosidade que extravasou da Europa para o mundo.

O que vem acontecendo é o retorno do que sempre esteve aí como um bicho de muitas cabeças à espreita. O impulso bipolar de destruir, autodestruindo-se, característica essencial da fenomenologia fascista, permanece ativo no refluxo contemporâneo dos movimentos de direita. Está presente no trumpismo, é desde o começo motor do bolsonarismo. Exaltação de um líder e desejo de morte contra inimigos fabricados, forças constituintes da ultradireita, são letras renovadas da cartilha do terror.

O turismo de guerra sérvio é capítulo de um genocídio inseparável da psicopatologia fascista. Esta, por sua vez, não é variável, dependente de poderes como partido, exército, indústria e burocracia, pois ocupa a centralidade das posições em torno do ponto cego do porquê as massas se submetem a uma ordem cuja transcendência não é a vida, mas a morte.

Torna-se assim viável a suspeita de um vórtice não histórico em que se precipita a história moderna, com projeções identificativas das massas sobre atores-monstros carismáticos, como seres das trevas que absorvem o instinto de morte dos fiéis e trocam direitos individuais por uma suposta forma superior de humanidade, uma classe, uma raça, uma casta guerreira. Hitler, Mussolini, Stálin, Putin, Trump e até o penoso Bolsonaro foram e são monstros da vez. Pistas explicativas para o direito de caça a humanos. Mas nada explica por que essa barbaridade não chegou às manchetes mundiais.

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