Por Folha de S. Paulo
'Qual é o denominador comum que une ingleses,
americanos e russos?', indagou o historiador brasileiro
Artigo faz parte de seção que republica
colunas de grande repercussão da história da Folha
Um dos maiores pensadores do Brasil, o
historiador e geógrafo Caio
Prado Júnior refletiu a respeito da democracia enquanto observava os
países da Europa sucumbirem diante da Segunda
Guerra Mundial.
"O que distingue fundamentalmente a
democracia do fascismo e a grande maioria dos ingleses, americanos e russos que
lutam, está perfeitamente conciente disto é que na democracia os direitos
individuais não são apenas garantidos pelo Estado, mas sua defesa e guarda está
nas mãos dos próprios interessados, isto é, do povo", escreveu em artigo
publicado na Folha da
Manhã, em 1943.
No início dos anos 1960, o jornal se fundiria
com a Folha da Manhã e a Folha da Tarde para dar origem à Folha de S.Paulo.
Leia a seguir o texto completo, parte da seção 105 Colunas de Grande Repercussão, que relembra crônicas que fizeram história na Folha. A iniciativa integra as comemorações dos 105 anos do jornal, em fevereiro de 2026.
Democracia e fascismo
(13/5/1943)
Quando a maior parte do mundo se acha
envolvida num conflito como o atual, sem precedente na história, e a questão em
debate, segundo se ouve de toda parte, é a democracia, parece-me que nada é
mais importante que procurar definir esta "democracia" em cujo
holocausto correm o sangue e as lágrimas de quase toda a humanidade.
O grave no assunto é que nem sempre há acordo
a respeito. Mas isto é sobretudo da parte daqueles que procuram discutir o
"conceito" de democracia, sua essência teórica. Ora, quando milhões
de vidas se expõem a cada momento para defender um ideal, parece mais justo
deixar de lado estas discussões abstratas, e procurar saber o que efetivamente
representa para aqueles que se batem por ele. Em outras palavras, qual é o denominador
comum que neste momento une ingleses, americanos e russos, os mais empenhados
na campanha?
Não pode ser senão uma certa forma de vida
política a que estão habituados e não querem abdicar, e que se opõe àquela que
representam as armas fascistas. Em que consiste tal vida? Não é dificil através
das inúmeras manifestações, pela imprensa, pelo rádio e tantas outras, que nos
chegam daqueles paises em luta, fazer um juizo sobre o assunto.
Em primeiro lugar, eles estão defendendo o
respeito à personalidade humana contra concepções que põem acima dela
considerações de raça, força ou outras; o que em termos concretos quer dizer, o
respeito por certos direitos que todos os homens consideram fundamentais para
sua existência e bem estar. Mas isto não esgota o assunto, porque o fascismo
alemão, italiano ou japonês tambem reconhece, mantem e garante alguns destes
direitos.
O que distingue fundamentalmente a democracia
do fascismo e a grande maioria dos ingleses, americanos e russos que lutam,
está perfeitamente conciente disto é que na democracia os direitos individuais
não são apenas garantidos pelo Estado, mas sua defesa e guarda está nas mãos
dos próprios interessados, isto é, do povo.
Por diferentes sistemas de organização
política, variaveis de um país democrático para outro, tal defesa e guarda são
exercidas pela intervenção dos cidadãos na formação e funcionamento do Estado,
que é orientado e fiscalizado permanentemente por eles.
Não apenas pela eleição de representantes que
nos parlamentos ou outras assembléias agem como mandatários, mas pelas
diferentes formas que lhes são dadas para se manifestarem livremente: imprensa,
assembléias e organizações populares, comicios etc.. Assim os interesses e
direitos do povo, embora entregues ao Estado, ficam, através do controle direto
e continuo exercido sobre este, efetivamente sob a guarda popular.
Isto não é teoria. É o que de fato se pratica
em todas as grandes democracias que hoje lutam contra o fascismo. Porque este é
precisamente a negação daquele direito de controle e fiscalização do povo sobre
os orgãos e ação do Estado.
O traço caraterístico do regime alemão,
italiano ou japonês, é distinguir duas entidades distintas: governo e povo;
separar a população em duas categorias: uma dos que mandam, dirigem; outra dos
que se limitam a obedecer. Os fascistas fundamentam esta distinção com o
argumento que os negócios públicos são excessivamente complexos para serem
resolvidos pelo povo; que este é "incompetente", mesmo para cuidar de
seus interesses e proteger seus direitos, e portanto deve confiá-los
inteiramente às mãos mais habeis de seus governantes.
Sob este pretexto, suprimem-se os orgãos
verdadeiramente representativos e qualquer livre manifestação do pensamento.
Tudo é entregue a um rigido controle governamental, e os cidadãos devem
curvar-se submissos e esperar que lhes venha do alto qualquer concessão ou
atenção a seus interesses.
O argumento fascista da incompetência popular
envolve um sofisma. Afirmado assim de uma forma geral, confunde duas coisas
distintas: política e administração; em outras palavras, a diretiva geral dos
negócios públicos, mais a sua fiscalização, com a realização efetiva dos
serviços governamentais. Nesta última, evidentemente, o povo tomado em massa é
incompetente; todos os cidadãos não são e não podem ser ao mesmo tempo
entendidos em legislação, justiça, finanças, educação pública, econômica etc..
Mas eles são perfeitamente capazes não só de
fiscalizar a execução destes vários serviços, que controlam muito bem pelos
resultados, mas ainda, e sobretudo, de fixar as diretrizes gerais da política.
Tome-se um caso concreto: se se trata por exemplo de proteger a indústria
nacional contra a concorrência estrangeira no mercado interno, só um
especialista será capaz de organizar convenientemente, a pauta alfandegária com
aquele fim. Mas, simplesmente como técnico no assunto, ele será incapaz de
afirmar se a indústria deve ser protegida.
É uma medida que favorece uns, prejudica
outros; com ela os industriais terão assegurada a venda de seus produtos, os
operários encontrarão mais trabalho; mas perdem os consumidores, que pagarão
preços mais elevados; perdem os produtores de gêneros exportaveis. Quem deverá
ser atendido? Não há critério técnico e económico para resolver a questão de
forma radical. Trata-se de matéria política, isto é, que depende da apreciação
do maior ou menor número de interesses em jogo, de um e doutro lado. E tal
apreciação não é matéria que possa ser solucionada com dados precisos,
técnicos, científicos.
Cabe aos próprios interessados, que seriam no
caso a população toda, o povo no seu conjunto, discutir a questão e chegar a um
acordo que harmonize a divergência. Ele o fará através dos diferentes meios de
que dispõe num país democrático: assembléias sob seu controle direto, imprensa,
organizações populares etc.. Numa pela livre manifestação do seu pensamento.
Assim será possivel resolver o assunto com um minimo de injustiças e erros; e
assim se resolve efetivamente nas democracias. Entregue a um grupo de
indivíduos, por mais capazes e honestos que sejam, mas fechados entre quatro
paredes e revestidos de poderes discricionários, haverá grande probabilidade,
senão certeza, que a solução favorecerá alguns em prejuizo de outros.
E quem poderá garantir sempre aquela
capacidade e honestidade? É por este motivo que nos países verdadeiramente
evoluem pacificamente, observadores superficiais ou mal intencionados vejam
agitação onde não há efetivamente senão um debate, caloroso embora, mas fecundo
e vivificador. Enquanto os países fascistas, sob uma aparência de paz, que mais
parece estagnação, o descontentamento, os murmúrios, o mau estar,
diz-que-diz-que e boatos substituem, mas sem os mesmos resultados, porque são
esteréis, a honesta e franca manifestação do pensamento livre.
É por esta liberdade de se manifestar,
rejeitando a tutela pesada de governos ditatoriais, e para poderem defender
eles próprios o direito e seus interesses, que lutam hoje os povos democráticos
do mundo. Disto, todos os ingleses, americanos, russos e seus aliados, estão
perfeitamente conscientes.

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