terça-feira, 11 de novembro de 2025

Caio Prado Júnior refletiu sobre democracia e fascismo ao observar a 2ª Guerra

Por Folha de S. Paulo

'Qual é o denominador comum que une ingleses, americanos e russos?', indagou o historiador brasileiro

Artigo faz parte de seção que republica colunas de grande repercussão da história da Folha

Um dos maiores pensadores do Brasil, o historiador e geógrafo Caio Prado Júnior refletiu a respeito da democracia enquanto observava os países da Europa sucumbirem diante da Segunda Guerra Mundial.

"O que distingue fundamentalmente a democracia do fascismo e a grande maioria dos ingleses, americanos e russos que lutam, está perfeitamente conciente disto é que na democracia os direitos individuais não são apenas garantidos pelo Estado, mas sua defesa e guarda está nas mãos dos próprios interessados, isto é, do povo", escreveu em artigo publicado na Folha da Manhã, em 1943.

No início dos anos 1960, o jornal se fundiria com a Folha da Manhã e a Folha da Tarde para dar origem à Folha de S.Paulo.

Leia a seguir o texto completo, parte da seção 105 Colunas de Grande Repercussão, que relembra crônicas que fizeram história na Folha. A iniciativa integra as comemorações dos 105 anos do jornal, em fevereiro de 2026.

Democracia e fascismo (13/5/1943)

Quando a maior parte do mundo se acha envolvida num conflito como o atual, sem precedente na história, e a questão em debate, segundo se ouve de toda parte, é a democracia, parece-me que nada é mais importante que procurar definir esta "democracia" em cujo holocausto correm o sangue e as lágrimas de quase toda a humanidade.

O grave no assunto é que nem sempre há acordo a respeito. Mas isto é sobretudo da parte daqueles que procuram discutir o "conceito" de democracia, sua essência teórica. Ora, quando milhões de vidas se expõem a cada momento para defender um ideal, parece mais justo deixar de lado estas discussões abstratas, e procurar saber o que efetivamente representa para aqueles que se batem por ele. Em outras palavras, qual é o denominador comum que neste momento une ingleses, americanos e russos, os mais empenhados na campanha?

Não pode ser senão uma certa forma de vida política a que estão habituados e não querem abdicar, e que se opõe àquela que representam as armas fascistas. Em que consiste tal vida? Não é dificil através das inúmeras manifestações, pela imprensa, pelo rádio e tantas outras, que nos chegam daqueles paises em luta, fazer um juizo sobre o assunto.

Em primeiro lugar, eles estão defendendo o respeito à personalidade humana contra concepções que põem acima dela considerações de raça, força ou outras; o que em termos concretos quer dizer, o respeito por certos direitos que todos os homens consideram fundamentais para sua existência e bem estar. Mas isto não esgota o assunto, porque o fascismo alemão, italiano ou japonês tambem reconhece, mantem e garante alguns destes direitos.

O que distingue fundamentalmente a democracia do fascismo e a grande maioria dos ingleses, americanos e russos que lutam, está perfeitamente conciente disto é que na democracia os direitos individuais não são apenas garantidos pelo Estado, mas sua defesa e guarda está nas mãos dos próprios interessados, isto é, do povo.

Por diferentes sistemas de organização política, variaveis de um país democrático para outro, tal defesa e guarda são exercidas pela intervenção dos cidadãos na formação e funcionamento do Estado, que é orientado e fiscalizado permanentemente por eles.

Não apenas pela eleição de representantes que nos parlamentos ou outras assembléias agem como mandatários, mas pelas diferentes formas que lhes são dadas para se manifestarem livremente: imprensa, assembléias e organizações populares, comicios etc.. Assim os interesses e direitos do povo, embora entregues ao Estado, ficam, através do controle direto e continuo exercido sobre este, efetivamente sob a guarda popular.

Isto não é teoria. É o que de fato se pratica em todas as grandes democracias que hoje lutam contra o fascismo. Porque este é precisamente a negação daquele direito de controle e fiscalização do povo sobre os orgãos e ação do Estado.

O traço caraterístico do regime alemão, italiano ou japonês, é distinguir duas entidades distintas: governo e povo; separar a população em duas categorias: uma dos que mandam, dirigem; outra dos que se limitam a obedecer. Os fascistas fundamentam esta distinção com o argumento que os negócios públicos são excessivamente complexos para serem resolvidos pelo povo; que este é "incompetente", mesmo para cuidar de seus interesses e proteger seus direitos, e portanto deve confiá-los inteiramente às mãos mais habeis de seus governantes.

Sob este pretexto, suprimem-se os orgãos verdadeiramente representativos e qualquer livre manifestação do pensamento. Tudo é entregue a um rigido controle governamental, e os cidadãos devem curvar-se submissos e esperar que lhes venha do alto qualquer concessão ou atenção a seus interesses.

O argumento fascista da incompetência popular envolve um sofisma. Afirmado assim de uma forma geral, confunde duas coisas distintas: política e administração; em outras palavras, a diretiva geral dos negócios públicos, mais a sua fiscalização, com a realização efetiva dos serviços governamentais. Nesta última, evidentemente, o povo tomado em massa é incompetente; todos os cidadãos não são e não podem ser ao mesmo tempo entendidos em legislação, justiça, finanças, educação pública, econômica etc..

Mas eles são perfeitamente capazes não só de fiscalizar a execução destes vários serviços, que controlam muito bem pelos resultados, mas ainda, e sobretudo, de fixar as diretrizes gerais da política. Tome-se um caso concreto: se se trata por exemplo de proteger a indústria nacional contra a concorrência estrangeira no mercado interno, só um especialista será capaz de organizar convenientemente, a pauta alfandegária com aquele fim. Mas, simplesmente como técnico no assunto, ele será incapaz de afirmar se a indústria deve ser protegida.

É uma medida que favorece uns, prejudica outros; com ela os industriais terão assegurada a venda de seus produtos, os operários encontrarão mais trabalho; mas perdem os consumidores, que pagarão preços mais elevados; perdem os produtores de gêneros exportaveis. Quem deverá ser atendido? Não há critério técnico e económico para resolver a questão de forma radical. Trata-se de matéria política, isto é, que depende da apreciação do maior ou menor número de interesses em jogo, de um e doutro lado. E tal apreciação não é matéria que possa ser solucionada com dados precisos, técnicos, científicos.

Cabe aos próprios interessados, que seriam no caso a população toda, o povo no seu conjunto, discutir a questão e chegar a um acordo que harmonize a divergência. Ele o fará através dos diferentes meios de que dispõe num país democrático: assembléias sob seu controle direto, imprensa, organizações populares etc.. Numa pela livre manifestação do seu pensamento. Assim será possivel resolver o assunto com um minimo de injustiças e erros; e assim se resolve efetivamente nas democracias. Entregue a um grupo de indivíduos, por mais capazes e honestos que sejam, mas fechados entre quatro paredes e revestidos de poderes discricionários, haverá grande probabilidade, senão certeza, que a solução favorecerá alguns em prejuizo de outros.

E quem poderá garantir sempre aquela capacidade e honestidade? É por este motivo que nos países verdadeiramente evoluem pacificamente, observadores superficiais ou mal intencionados vejam agitação onde não há efetivamente senão um debate, caloroso embora, mas fecundo e vivificador. Enquanto os países fascistas, sob uma aparência de paz, que mais parece estagnação, o descontentamento, os murmúrios, o mau estar, diz-que-diz-que e boatos substituem, mas sem os mesmos resultados, porque são esteréis, a honesta e franca manifestação do pensamento livre.

É por esta liberdade de se manifestar, rejeitando a tutela pesada de governos ditatoriais, e para poderem defender eles próprios o direito e seus interesses, que lutam hoje os povos democráticos do mundo. Disto, todos os ingleses, americanos, russos e seus aliados, estão perfeitamente conscientes.

 

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