quarta-feira, 12 de novembro de 2025

Governadores chocam o ovo da serpente ao apoiar matança policial, por Ana Luiza Albuquerque

Folha de S. Paulo

Estratégia busca ganhos eleitorais, mas corrói as bases da democracia liberal

Legitimar violência pode favorecer um novo outsider, mais radical e sem amarras a partidos

Com muito desembaraço, governadores de direita organizaram um espetáculo para anunciar o que chamaram de "Consórcio da Paz". Motivado pela operação policial mais letal da história brasileira, que deixou 121 mortos no Rio de Janeiro, o grupo escolheu um nome que beira a ironia na melhor das hipóteses, e o sadismo, na pior.

Parecia a oportunidade perfeita para transformar uma operação malsucedida (apenas 20% dos mandados de prisão foram cumpridos) em uma arma contra o presidente Lula. Especialmente quando aliados do ex-presidente Jair Bolsonaro admitem, sob reserva, cansaço com a pauta da anistia.

Há sempre o risco, porém, de que os governadores choquem o ovo da serpente. Se apostam em normalizar a matança para colher ganhos eleitorais, podem se surpreender com um novo outsider, ainda mais radical, e sem amarras a partidos ou empresários.

A desconfiança nas instituições é terreno fértil para personagens do tipo. Nas eleições da capital paulista em 2024, o influenciador Pablo Marçal desbaratinou a campanha do prefeito Ricardo Nunes, avançou sobre o eleitorado de Bolsonaro e quase chegou ao segundo turno.

Um ambiente radicalizado, permeado pelo sentimento antissistema, não é o mais propício para figuras como o governador Cláudio Castro, gravado com uma mochila a tiracolo após um encontro com um empresário (um delator disse que ali havia R$ 100 mil em propina; Castro garantiu que guardava chocolates).

Além disso, quando governadores dos quais ainda se espera alguma moderação (afinal, não são Jair Bolsonaro, que manda opositores para a ponta da praia) comemoram a matança do Estado, está legitimada a corrosão de pilares da democracia liberal, como a igualdade dos cidadãos perante a lei.

Isso ocorre em um momento em que esse sistema sobrevive aos trancos e barrancos. Como revelaram as investigações sobre a tentativa de golpe, por pouco não perdemos não apenas o liberalismo político mas também a democracia (não à toa o filósofo Norberto Bobbio fala sobre a indissociabilidade entre os dois conceitos).

Pesquisa Datafolha publicada poucos dias após a operação no Rio de Janeiro revelou o apoio de 57% dos moradores da capital e da região metropolitana. Os dados foram coletados no calor do momento, mas fica a dúvida: a maioria está disposta a apoiar medidas ainda mais violentas e autoritárias na esperança de se sentir mais segura?

Em El Salvador, a população respondeu que sim e elegeu o outsider Nayib Bukele. De fato, há dezenas de estudos que associam o menor apoio à democracia à insatisfação com os bens e serviços entregues pelos governos.

Como candidato, Lula pode tentar fugir do tema até 2026. Como presidente não. É hora de parar de tutelar o eleitorado e tratá-lo com condescendência, e apresentar soluções efetivas. O PL Antifacção é um primeiro passo. A escolha do ex-Rota Guilherme Derrite, secretário do governador bolsonarista Tarcísio de Freitas, para a relatoria do projeto mostra, porém, que a coalizão política pode ser um desafio ainda maior.

 

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