Folha de S. Paulo
Estratégia busca ganhos eleitorais, mas
corrói as bases da democracia liberal
Legitimar violência pode favorecer um novo
outsider, mais radical e sem amarras a partidos
Com muito desembaraço, governadores de direita organizaram um espetáculo para anunciar o que chamaram de "Consórcio da Paz". Motivado pela operação policial mais letal da história brasileira, que deixou 121 mortos no Rio de Janeiro, o grupo escolheu um nome que beira a ironia na melhor das hipóteses, e o sadismo, na pior.
Parecia a oportunidade perfeita para transformar uma operação malsucedida (apenas 20% dos mandados de prisão foram cumpridos) em uma arma contra o presidente Lula. Especialmente quando aliados do ex-presidente Jair Bolsonaro admitem, sob reserva, cansaço com a pauta da anistia.
Há sempre o risco, porém, de que os
governadores choquem o ovo da serpente. Se apostam em normalizar a matança para
colher ganhos eleitorais, podem se surpreender com um novo outsider,
ainda mais radical, e sem amarras a partidos ou empresários.
A desconfiança nas instituições é terreno
fértil para personagens do tipo. Nas eleições da capital paulista em 2024, o
influenciador Pablo Marçal desbaratinou
a campanha do prefeito Ricardo Nunes, avançou sobre o eleitorado de Bolsonaro
e quase chegou
ao segundo turno.
Um ambiente radicalizado, permeado pelo
sentimento antissistema, não é o mais propício para figuras como o governador
Cláudio Castro, gravado com uma
mochila a tiracolo após um encontro com um empresário (um
delator disse que ali havia R$ 100 mil em propina; Castro garantiu que guardava
chocolates).
Além disso, quando governadores dos quais
ainda se espera alguma moderação (afinal, não são Jair
Bolsonaro, que manda opositores para a ponta
da praia) comemoram a matança do Estado, está legitimada a corrosão
de pilares da democracia liberal, como a igualdade dos cidadãos perante a lei.
Isso ocorre em um momento em que esse sistema
sobrevive aos trancos e barrancos. Como revelaram as investigações sobre
a tentativa de
golpe, por pouco não perdemos não apenas o liberalismo político mas
também a democracia (não à toa o filósofo Norberto Bobbio fala sobre a
indissociabilidade entre os dois conceitos).
Pesquisa
Datafolha publicada poucos dias após a operação no Rio de
Janeiro revelou o apoio de 57% dos moradores da capital e da região
metropolitana. Os dados foram coletados no calor do momento, mas fica a dúvida:
a maioria está disposta a apoiar medidas ainda mais violentas e autoritárias na
esperança de se sentir mais segura?
Em El Salvador, a população respondeu que sim
e elegeu o outsider
Nayib Bukele. De fato, há dezenas de estudos que associam o menor
apoio à democracia à insatisfação com os bens e serviços entregues pelos
governos.
Como candidato, Lula pode tentar fugir do
tema até 2026. Como presidente não. É hora de parar de tutelar o eleitorado e
tratá-lo com condescendência, e apresentar soluções efetivas. O PL Antifacção é
um primeiro passo. A escolha do ex-Rota
Guilherme Derrite, secretário do governador bolsonarista Tarcísio de
Freitas, para a relatoria do projeto mostra, porém, que a coalizão
política pode ser um
desafio ainda maior.

Nenhum comentário:
Postar um comentário
Observação: somente um membro deste blog pode postar um comentário.