O Globo
Quantas creches, escolas técnicas,
universidades, centros culturais, oportunidades de trabalho surgiram onde o
Estado só aparece fardado?
Já passaram 18 anos desde a primeira grande
invasão ao Complexo do Alemão. Quase duas décadas depois, seguimos repetindo o
mesmo roteiro: o Estado entra atirando, a imprensa transmite ao vivo, as
autoridades prometem “recuperar o território” — e logo a vida volta ao normal
de sempre: escolas precárias, oportunidades escassas e a torneira da violência
aberta.
O outro lado do normal em algumas cidades é este: tiros, bombas e corpos. Infelizmente. A manchete já não comove. É preciso mais corpos empilhados, mais câmeras, mais espetáculo.
A cada operação, a conta é previsível:
mortos, feridos, viaturas queimadas, corpos tombados de ambos os lados.
Policiais exaustos, meninos sem destino. E a pergunta que ninguém responde: o
que foi feito entre uma invasão e outra? Quantas creches, escolas, universidades,
centros culturais, oportunidades de trabalho surgiram nesses lugares onde o
Estado só aparece fardado?
Na Faria Lima, os jovens são incentivados a
sonhar grande, a investir, a abrir startups. Nas vielas da favela, são
ensinados a sobreviver e a correr. Territórios do mesmo país, separados não por
quilômetros, mas por escolhas políticas. Lá se premia o risco criativo; aqui se
pune o simples ato de existir.
Enquanto isso, a engrenagem da guerra
continua girando. Quem aperta o botão da operação raramente pisa no chão onde
ela acontece. Não é ele quem corre, quem sangra, quem é acordado pelo som dos
helicópteros. O custo de um dia de confronto — com munição, blindados, efetivo
e funerais — poderia sustentar escolas, bolsas, oficinas de cultura e esporte
durante meses.
E o enredo se repete: o telefone toca, o
terror começa. Mais um soldado parte, mais um menino tomba. O Estado anota
estatísticas. O povo anota ausências. O país assiste, como se fosse mais um
episódio de uma série trágica que nunca sai do ar.
Estudos mostram que o Brasil gasta mais de R$
20 mil por ano para manter um preso e pouco mais da metade disso para manter um
aluno na escola.
Essa guerra não tem vencedores. Quem perde
são sempre os mesmos: mães, esposas, filhos, irmãos. As lágrimas se igualam na
dor e no abandono — das mães que choram seus filhos com farda e das que choram
os que nunca tiveram uma. Mas quem se importa com essas mães? A máxima da
guerra é: que chore a sua mãe, e não a minha.
Sabemos que esse enredo serve à nova fase do
país — aquela que transforma tragédia em palanque e faz dos mortos, fardados ou
não, ativos eleitorais.
Quando a poeira baixa, ficam as marcas nos
muros e nos corações. O medo se espalha, o ódio fermenta, e o ciclo recomeça.
Seguimos presos à lógica do confronto, incapazes de perceber que, enquanto celebramos
supostas vitórias, enterramos mais um pedaço do nosso futuro.
Se quisermos vencer de fato, será preciso
trocar o vocabulário da guerra pelo da vida. Investir em creches e
universidades em vez de presídios. Em políticas públicas que enxerguem o jovem
antes que ele precise ser contido. Em ações que ofereçam um caminho antes que o
único caminho seja o beco sem saída da violência.
Até lá, continuaremos contando corpos,
rezando pelas mães e repetindo o mesmo drama: uma guerra sem vencedores, em que
todos perdem — e em que o preço da indiferença se mede em vidas.

Nenhum comentário:
Postar um comentário
Observação: somente um membro deste blog pode postar um comentário.