Folha de S. Paulo
A política que nos espera é baseada na
dessensibilização das massas por meio do medo, que gera raiva, que vira ódio
Visita de outros governadores da extrema
direita ao Rio é apenas o sinal de que a fórmula será repetida
Na última
quinta-feira, dia 29 de outubro, entre corpos decapitados,
decepados, esfaqueados e desfigurados por tiros de fuzil, a praça São Lucas, no
complexo da Penha, transformou-se em um necrotério a
céu aberto. Dezenas de cadáveres estendidos no chão fizeram da morte
um palanque eleitoral do governador mais
desacreditado do país, desesperado pela necessidade de recuperar a popularidade
perdida e conseguir uma vaga no Senado nas próximas eleições,
pois precisa continuar se blindando da investigação de escândalos de corrupção
que o perseguem há anos.
Até agora, são 117 pessoas mortas sem história, sem rosto, sem famílias, sem indignação, sem comoção. Só um número, como quem faz a contabilidade de objetos perdidos. São brasileiros submetidos à invisibilidade de gerações. São os brasileiros que, para alguns, não merecem lágrimas. É estarrecedor que até agora impere esse silêncio e essa dessensibilização.
Dos mortos identificados, 20 não tinham
qualquer passagem pela polícia ou ficha criminal, 7 também não tinham histórico
criminal, mas agora são acusados de envolvimento com o tráfico (simplesmente
por postagens nas redes sociais), e 3 tinham meras anotações infracionais
quando eram menores. Segundo o próprio secretário de Segurança do Rio, essas
"eram pessoas que passavam despercebidas da atuação da polícia".
Agora, em que mundo uma operação policial que mata 30 pessoas que
"passavam despercebidas" pode ser chamada de
"bem-sucedida"? O que isso realmente mostra, a não ser que
essas vidas não contam, que elas não têm valor? Ou seja, o "crime"
que elas cometeram era serem pretas, viverem na favela e estarem no meio do
caminho das balas da polícia.
Queremos saber das histórias de todos os
mortos, de suas famílias e de seus sonhos destruídos. Há uma obrigação de luto
que funda o vínculo social e é incondicional. Ninguém pode ser cúmplice dessa
desumanização macabra. Muitos corpos apresentam tiros na nuca,
ou seja, foram executados. Mas ninguém deu direito à polícia de executar quem
quer que seja. Uma polícia que executa não passa de uma corporação criminosa e
não serve para uma sociedade democrática.
O que estamos a assistir no Rio de Janeiro é
o retrato do que nos espera. Essa política é baseada na dessensibilização das
massas por meio do medo, que gera raiva, que vira ódio. Governos estaduais que
não são capazes de resolver problema algum nas áreas de saúde, de educação,
ecologia, empregos mobilizam suas tropas atirando na população, gritando
"ou soma ou suma", como se fossem generais de uma guerra civil. A
visita de outros governadores da extrema direita ao Rio de Janeiro, no dia
seguinte à chacina, é apenas o sinal de que a fórmula será repetida para salvar
outros governantes de sua própria incompetência.
O Brasil é o nome de uma forma de violência.
Um projeto de normalização do terror construído a base de genocídio, extermínio
e chacinas. Da ideologia das "classes perigosas" ao discurso
"bandido bom é bandido morto", este país sempre foi um laboratório do
fascismo. Quem acha que isso é conversa fiada de centro acadêmico deveria
lembrar que o Brasil foi a nação que, nos anos 1930, teve o maior partido
fascista fora da Europa, com 1,2 milhão de membros: a Ação
Integralista Brasileira, fundada por Plínio
Salgado, em 1932. Essas pessoas não desapareceram. Suas ideias
continuaram vivas e pulsantes. E o fascínio popular pelo bolsonarismo é a maior
evidência disso.
O que Cláudio
Castro fez não foi uma "operação policial", mas
simplesmente um crime bárbaro que não vai trazer segurança alguma ao estado. E
ele sabe bem disso. Tais chacinas nunca resolveram nada nos últimos cem anos e
continuarão a nada resolver nos próximos cem anos.
No final, a última vítima é o próprio Brasil.
Um país com governadores que, em cima de uma montanha de mais de cem mortos,
afirmam "de vítimas, só tivemos os [quatro] policiais" volta aos
piores momentos da ditadura militar, com seus esquadrões da morte, suas escuderias Le
Cocq e seus policiais corruptos.
Somos agora tomados de assalto por
governantes que procuram fazer a população esquecer que eles são completamente
impotentes diante das crises econômicas, sociais e ecológicas que nos assolam.
Governantes que escondem sua impotência atrás da potência covarde de
carnificinas expostas em nossas praças.

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