terça-feira, 4 de novembro de 2025

Otoni, o adversário do bolsonarismo gospel, por Juliano Spyer

Folha de S. Paulo

Em discurso, deputado defendeu a polícia, mas atacou o governador

Parlamentar respondeu melhor do que o Planalto à crise de segurança

É verdade que a bancada evangélica reúne representantes muito diferentes do campo evangélico. Mas o alinhamento produzido pelo bolsonarismo agora divide espaço com vozes dissidentes.

A fala do deputado Nikolas Ferreira (PL-MG), ao comentar a ação militar no Rio, repetiu sua fórmula: a esquerda é a causa de todos os males do país.

Para engajar nas redes, recorre a frases de impacto. Classificou a operação como "a maior faxina da história do Rio de Janeiro". Seu colega de partido, André Fernandes, também evangélico, foi além: pediu uma salva de palmas para os bandidos mortos.

É fato que o brasileiro quer mais segurança —inclusive o evangélico, que é majoritariamente periférico e deseja mais proteção em seus bairros. Mas o argumento punitivista —"bandido bom é bandido morto"— é rejeitado em muitas igrejas.

"Na boca de Jesus não se ouviu essa frase", pregou o pastor pentecostal Nilson Gomes às vésperas da eleição presidencial de 2018. "Na boca de Jesus [o ladrão] ouviu: ‘Hoje estarás comigo no paraíso’."

Foi nessa brecha que entrou o deputado e pastor Otoni de Paula (MDB-RJ). "É fácil subir nesta tribuna e dizer ‘que bom, matou’, porque o seu filho não está lá dentro", discursou Otoni.

"Preto, de chinelo Havaiana e sem camisa pode ser trabalhador, mas, se correr, é bandido", acrescentou, informando que pelo menos quatro evangélicos que nunca haviam pegado em fuzis morreram na ação.

Por não ter o compromisso de defender um dos lados, seu discurso soa mais honesto e ponderado. Ele defende a polícia e apoia o uso da força contra o crime, mas critica o que chama de "espetáculo" do governador do Rio, que, segundo ele, busca dar a falsa impressão de que algo está sendo resolvido.

Otoni foi líder da bancada evangélica e bolsonarista até ser preterido pelo ex-presidente quando quis disputar a eleição para prefeito do Rio no ano passado. Fez uma autocrítica, passou a denunciar a instrumentalização da fé. Agora prega que parlamentares evangélicos se orientem pela Bíblia, não por interesses partidários.

A imagem que ficou dessa ação policial é a dos corpos de jovens mortos a céu aberto, em uma rua estreita de bairro pobre, observados pelos moradores. A celebração de Nikolas soa deslocada diante dessa cena; a de Otoni dialoga com ela.

"Quem controla o dinheiro do crime é branco, tem olho azul e curso em faculdade. O dinheiro do crime está sendo lavado em fintechs —mas é mais fácil meter o pé na porta do favelado", concluiu.

Mesmo sem defender Lula e o PT, Otoni respondeu melhor do que o Planalto à crise no Rio. Com a direita desorganizada, ele se posiciona como uma liderança alternativa para candidatos e partidos que queiram cortejar os numerosos evangélicos pentecostais.

Mas, mais do que qualquer discurso, o vídeo que viralizou entre evangélicos foi o da banca da Igreja Universal, na Vila Pinheiro, distribuindo água e oração aos moradores, ao lado dos corpos deixados pela operação. É assim que as igrejas querem ser vistas no debate sobre a violência: não como justiceira, mas como abrigo a quem precisa.

 

 

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