O Globo
Votar a toque de caixa uma proposta complexa
como a que muda toda a abordagem para enfrentar o crime organizado pode levar a
judicialização
Um sintoma claro da falta de massa crítica
que existe hoje no Congresso Nacional é o grau de improviso assustador que se
percebe quando deputados e senadores se veem forçados a apresentar soluções
para problemas complexos que vão além de seus próprios interesses. Nessas
horas, eles saem da inação completa para um açodamento que sempre implica risco
enorme de produzirem uma barbaridade.
O tema da segurança pública é o campeão em suscitar essa aflição por fazer alguma coisa (qualquer coisa) para “dar uma satisfação à sociedade” sem que se saiba direito o quê. Depois da megaoperação das polícias do Rio em 28 de outubro, foi dada a largada a mais uma dessas corridas malucas.
O presidente da Câmara, Hugo Motta
(Republicanos-PB), designou o secretário licenciado de Segurança de São Paulo,
Guilherme Derrite, para relatar um substitutivo juntando propostas
absolutamente discrepantes entre si: o Projeto de Lei antifacção do governo
(Projeto de Lei 5.582/2025) e outro, do deputado Danilo Forte (PL 1.283/25),
que modifica a Lei Antiterrorismo, de 2016, e enquadra os crimes praticados por
facções criminosas que agem no Brasil nessa categoria.
Uma das razões para a demora do envio da
proposta do Executivo sobre o assunto foi justamente a resistência no governo a
abrir brechas para chamar essas organizações criminosas por nomenclaturas como
máfias ou grupos terroristas. As razões vão do risco que isso implicaria à
soberania nacional a prejuízos que poderiam sofrer investimentos estrangeiros
no Brasil e negócios de empresas brasileiras no exterior. A medida foi
classificada como “novo tarifaço” pelos malefícios que poderia acarretar.
Não bastasse isso, quando se obteve acesso às
duas primeiras versões do texto de Derrite, integrantes de corporações que
integram o arcabouço de combate ao crime organizado, como Polícia Federal e
Ministérios Públicos federal e estaduais, passaram a apontar riscos para sua
atuação a partir de condicionantes incluídas pelo deputado-secretário.
A indicação de Derrite ainda dinamitou a
reaproximação que vinha ocorrendo entre Motta e o governo, depois de seguidos
episódios de bateção de cabeça e hesitação de liderança por parte de Motta. O
acúmulo de desgastes, aliás, explica a ansiedade do deputado paraibano por
votar a toque de caixa qualquer coisa sobre segurança.
Leia também: Derrite
e Motta buscam aval do STF para projeto
Não é factível imaginar que uma proposta tão
complexa, que mexe na tipificação de crimes, na imputação de penas, nos
mecanismos de colaboração entre entes federativos, cria novas estruturas para
enfrentar facções e se propõe a ampliar a inteligência para minar o poderio
financeiro desses grupos, vá ser votada menos de uma semana depois da
designação de um relator que nem estava no exercício do mandato. Isso não é dar
uma resposta, é fazer brincadeira em cima de um assunto sério.
O fato de o texto precisar de três remendos
em 24 horas mostra sua fragilidade absoluta. A matéria não produzirá efeitos
imediatos em realidades como a vivida em comunidades do Rio, da Bahia, do Ceará
e de outros estados brasileiros. Justamente por ser uma proposta de mudança nos
paradigmas de enfrentamento a longo prazo às facções que exercem domínio
territorial e submetem essas populações a jugo sem que o Estado se faça
presente, ela precisa ser bem formulada.
Um projeto que não leve em conta todas as
consequências das mudanças propostas, inclusive a chance de abrir brechas ao
próprio crime organizado, além da judicialização óbvia, será um desserviço a
uma pauta em que o consenso é tão difícil de obter.
A busca por protagonismo com vista à eleição
de 2026 tampouco ajuda nesta hora. A matéria foi fruto de intensa discussão do
governo, que, obviamente, é seu autor. Que o Congresso atue para aprimorá-la, e
não para disputar sua paternidade de olho nos palanques do ano que vem.

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