Correio Braziliense
A ruptura entre o Estado de
Direito e a ação estatal de guerra traduz uma matriz autoritária persistente,
cuja origem remonta ao pensamento de Oliveira Vianna
Desde a operação de “cerco e aniquilamento”
de traficantes nos complexos do Alemão e da Penha, na Zona Norte do Rio de
Janeiro, a crise da segurança pública passou a ocupar o centro da política
nacional. Segundo o governo fluminense, dos 117 mortos na megaoperação, 115
foram identificados: mais de 95% tinham ligação com o Comando Vermelho, e 54%
eram de fora do estado. Ao todo, 62 eram naturais de outros estados.
O relatório mostra chefes de organizações criminosas de 11 unidades da Federação, o que revela a dimensão nacional do problema e a necessidade de presença efetiva da União, o que apenas será possível com a aprovação da PEC do Sistema Único de Segurança Pública (Susp). Entretanto, a proposta está paralisada porque governadores de oposição rejeitam a centralidade do Ministério da Justiça na coordenação do sistema, inspirado no modelo federativo do SUS.
O governo federal procura agir dentro dos
marcos constitucionais: Lula sancionou a lei de autoria de Sergio Moro que
tipifica crimes de “obstrução de ações contra o crime organizado” e
“conspiração para obstrução”, além de ter enviado projeto que endurece penas
contra líderes do tráfico e seus operadores financeiros. O embate político,
porém, se agravou com a ofensiva da oposição pela adoção de legislação
antiterrorista contra o narcotráfico.
Essa iniciativa transfere a política criminal
do campo da segurança pública para o da segurança nacional, abrindo espaço para
o uso de métodos de guerra e a suspensão de garantias constitucionais. O gesto
do governador Cláudio Castro, ao enviar mensagem ao presidente dos Estados
Unidos, Donald Trump, pedindo o reconhecimento do Comando Vermelho como
organização terrorista, simboliza o novo paradigma: a política interna passa a
ser regida pela lógica da exceção e pela retórica do inimigo interno, agora com
um pedido de ajuda e intervenção direta norte-americana.
De fato, a proposta de equiparar facções
criminosas a organizações terroristas encontra adesão popular. Pesquisa Quaest
divulgada nesta segunda-feira mostra que 85% dos fluminenses apoiam o aumento
de penas para homicídios a mando do crime organizado, e 72% defendem o
enquadramento das facções como terroristas.
Esse resultado expressa um sentimento de
desespero social diante de um Estado que perdeu o monopólio da força e vê o
território metropolitano fragmentado em microestados armados. Mas também revela
um perigoso deslocamento: a demanda por segurança converte-se em demanda por um
regime de exceção.
Guerra urbana
A megaoperação Contenção simboliza esse ponto
de inflexão. Não se trata de prevenir ou integrar, mas de conter um inimigo
interno que ocupa territórios “perdidos” da cidade. O Estado passa a agir como
força ocupante, não como garantidor de direitos. Essa ruptura entre o Estado de
Direito e a ação estatal de guerra traduz uma matriz autoritária persistente,
cuja origem remonta ao pensamento de Oliveira Vianna.
Em Populações Meridionais do Brasil (1920), Vianna
formulou uma teoria do Estado brasileiro baseada em determinismo racial e
hierarquia social. Dividiu o país entre “povos organizadores”, das regiões Sul
e Sudeste, e “povos desagregados”, do Norte e Nordeste, concebendo o Estado
como tutor das massas incapazes de autogoverno.
As elites “superiores”, dotadas de
racionalidade e disciplina, seriam as únicas aptas a impor ordem sobre o povo
“instintivo e indisciplinado”. A sociedade civil, nessa visão, é passional e
desorganizada.O Consórcio da Paz, formado pelos governadores de São Paulo, Rio
de Janeiro, Minas, Brasília, Goiás, Mato Grosso e Santa Catarina, hoje,
encarnaria esse papel de guardião da sociedade.
Essa concepção impregnou a formação do Estado
autoritário brasileiro, no Estado Novo e durante o regime militar, e sobrevive
na cultura policial contemporânea. Quando o poder público trata as favelas como
zonas de exceção e seus habitantes como populações a serem controladas,
reafirma a ideia da incapacidade congênita dos pobres para a vida civilizada.
A polícia, nesse contexto, não age como força
cidadã, mas como instrumento encarregado de impor disciplina e cercar
territórios considerados irrecuperáveis. Na prática, sabe-se que quem ocupa
esse espaço são as milícias, em conluio com policiais corruptos. Abre-se um
novo ciclo, porque a milícia não sobe o morro.

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