sexta-feira, 7 de novembro de 2025

Segurança tem de superar o dia da marmota, por Fernando Abrucio

Valor Econômico

Sem um plano realmente consistente para lidar com o alastramento das facções do crime organizado, a política para a área volta sempre às mesmas infrutíferas iniciativas

A política de segurança pública no Brasil tem seguido predominantemente a lógica do dia da marmota. Para quem não conhece a metáfora, ela diz respeito à festa americana do dia 2 de fevereiro, quando se tenta prever a duração efetiva do inverno pelo comportamento desse peculiar bicho. Todo ano uma marmota é observada, como um eterno retorno. O filme traduzido para o português como “Feitiço do Tempo” usa esse evento para retratar a vida de um homem que diariamente acorda revivendo que o fez no dia anterior. Parece ser essa a sina da proposta hegemônica para resolver os males da criminalidade brasileira.

O que foi feito no Complexo do Alemão pelo governador Cláudio Castro é a reprodução da mesma estratégia tentada por muitos governadores do Rio de Janeiro e de outros estados desde a redemocratização. Há um dia mágico em que uma comunidade é invadida para acabar com traficantes e afins, pessoas morrem e são presas, sem que sejam pegos os verdadeiros chefes das facções, e se decreta que, a partir de então, um combate duro contra o crime será instalado.

A população local é oprimida pelo crime organizado há décadas - e por vezes pela própria polícia - e anseia pela recuperação de seus direitos básicos. A primeira operação, como o dia da marmota, é comemorada efusivamente como algo redentor, capaz de mudar a vida de toda a comunidade. Parte dos moradores desconfia do eterno retorno nesse jogo, mas aposta inicialmente no sucesso porque, para lembrar da peça de Paulo Pontes, o brasileiro tem a esperança como profissão.

No dia seguinte, comunicadores populares e políticos, especialmente os mais à direita, exploram essa esperança e dizem que é preciso endurecer a estratégia contra o crime, na linha do “tiro, porrada e bomba”, e parar de ouvir o “o pessoal dos direitos humanos”. Surgem várias propostas de alteração legislativa e medidas que terão um efeito salvador e mágico contra a bandidagem. Uma onda da opinião pública se instala abarcando quase todas as classes sociais.

O problema é que essa política não tem tido, desde a década de 1980, um plano realmente consistente para lidar com o alastramento das facções do crime organizado. Meses depois do dia da marmota, surge uma sensação de fracasso e impotência porque a violência do crime organizado continua, particularmente nas comunidades onde o território foi dominado pelas facções. Os políticos que defendem essa estratégia sempre vão dizer que faltou algum endurecimento a mais, mantendo o discurso de que o Estado brasileiro protege o bandido.

A síntese desse caminho é bem representada pelo que ocorreu na intervenção federal no Rio de Janeiro em 2018. No início, as Forças Armadas eram aplaudidas ao caminharem nas ruas. Oitenta e três por cento dos moradores do Rio de janeiro aprovavam a medida. Ao final do ano, quando o processo acabou de forma melancólica, apenas 33% da população disseram que a segurança tinha melhorado.

Agora poderá se repetir esse fenômeno, porque a sensação de alívio só ocorreria se o crime organizado fosse reduzido drasticamente, e aparentemente o governo fluminense e a maioria da direita não têm a menor ideia do que fazer no dia seguinte dessas operações, ou se houvesse uma invasão policial das comunidades todo mês. Mas se tais ações forem recorrentes, mais gente vai morrer, inclusive moradores locais que sofrem com os criminosos. Isso desmoralizaria a perspectiva salvacionista do tiro, porrada e bomba.

Em meio à repetição dos dias da marmota, os políticos progressistas ainda não propuseram algo sistêmico e de longo prazo para minorar o sofrimento das comunidades vulneráveis tomadas pelo crime organizado. Certamente são muito importantes por defenderem o estado de direito, porque isso evita a barbárie defendida por populistas de direita, pois quando a violência estatal fica sem controles no Brasil, são os mesmos pobres, já explorados pelos criminosos, que mais sofrem. Porém, afora algumas ações minoritárias e fragmentadas, o centro e a esquerda não conseguiram ter um plano maior e implementar soluções mais profundas contra as facções.

O governo Lula III representa bem essa insuficiência progressista no combate às facções expandidas para todo o país. A preocupação com o tema demorou a se tornar central em sua agenda. Começou a ter maior destaque no ano passado, com a proposta do Sistema Único de Segurança Pública (Susp), mas parecia que nem todos os governistas, incluindo ministros poderosos, estavam realmente convencidos da necessidade dessa medida. Mas depois da operação no Complexo do Alemão o tema do crime organizado só pode ser prioridade máxima ao Executivo federal.

O projeto do SUSP e a Lei Antifacção são medidas corretas, mas o governo Lula terá que convencer boa parte dos eleitores acerca da prioridade do assunto em sua agenda. Mais do que isso, terá de apresentar alguma agenda de curto prazo que minore o sofrimento da população com a criminalidade e se interligue com a agenda mais ampla e estratégica. Paradoxalmente, a CPI do Crime Organizado, pedida por quem queria montar o palanque eleitoral da direita que acredita no dia da marmota, pode ser um espaço para que o Executivo federal crie consensos sobre as principais medidas na segurança pública e, assim, ganhe créditos eleitorais por isso.

De todo modo, a superação do dia da marmota passa principalmente por dois processos. O primeiro é o da admissão de que, para além da agenda predominante das operações salvacionistas de curto prazo, há boas experiências em segurança pública em várias partes do país. Desde programas antigos como o Pacto pela Paz em Pernambuco, passando por governos estaduais que conseguiram juntar o planejamento inteligente da política pública com uma governança integradora dos agentes públicos, como têm sido os casos da Paraíba, Espírito Santo e, mais recentemente, do Rio Grande do Sul, aos quais se juntam governos locais muito bem-sucedidos no combate à criminalidade, tal qual o exemplo do Pacto Niterói Contra Violência - sim, do lado da cidade do Rio de Janeiro há coisas além do eterno retorno da invasão policial dos morros.

É possível, aliás, recuperar o sentido mais profundo das chamadas UPPs que por um tempo estiveram presentes no Rio de Janeiro, como experiências de policiamento comunitário na cidade de São Paulo. Eram propostas integradoras de medidas especificamente policiais, como a retomada dos territórios, com ações de construção de mais oportunidades de bens públicos às comunidades.

Não há uma dicotomia entre esses dois objetivos. Esse modelo pode ser apoiado pelo governo federal, de forma institucionalizada, e ainda se articular com os governos municipais, que começam a ter uma visão mais estratégica sobre o tema, como revela a proposta do prefeito Eduardo Paes de contratar especialistas em políticas públicas de segurança pública, com a tarefa de produzir programas e ações baseados em evidências.

Aqui entra o segundo passo necessário a uma proposta que vá além do dia da marmota. A segurança pública precisa ter um conjunto de propostas ancoradas em evidências e experiências bem-sucedidas. Esse campo de política pública não tem a mesma densidade acadêmica, nem uma coalizão política de gestores tão forte como a saúde. Entretanto, já há muitos estudos e mesmo trabalhos conjuntos com governos que resultaram num conhecimento seguro sobre o que não fazer, e várias pistas sobre o que fazer.

O ponto de partida é que não há solução única e mágica, e o sucesso deriva de uma visão sistêmica, elencando reformas essenciais e a articulação entre elas. Por exemplo, medidas que queiram estabelecer tipificações penais às facções, corretas em si, serão fadadas ao fracasso se não dialogarem com a necessária reforma do sistema prisional. Basta lembrar que o PCC nasceu de uma ação violenta do Estado contra um presídio, e dali por diante esse equipamento público se transformou no lugar mais importante para a reprodução dessa facção.

Criar o Susp é o alicerce desse processo reformador, porque gera a governança básica que articula União, estados e municípios no combate nacional contra o crime organizado. Nenhum dos entes conseguirá, sozinho, ter sucesso nesta empreitada. Cabe reforçar, a partir das experiências de outras políticas públicas, que é necessário ter fóruns federativos tripartite e bipartites (articulação do estado com os municípios) que constituam as arenas responsáveis pela construção dos consensos e das ações coordenadas.

A governança federativa é um passo essencial, mas que precisará de muitas outras medidas, que devem fortalecer a inteligência policial em torno de dados e planejamento, melhorar as condições dos profissionais da área, integrar as polícias (especialmente a civil com a militar), combinar a tomada dos territórios com a produção de oportunidades por meio de bens públicos, para citar as principais (mas não únicas) propostas.

Livrar-se da maldição do dia da marmota que predomina na política de segurança pública deveria ser o objetivo maior daqui por diante. Transformar o tema em palanque barato é enganar mais uma vez os cidadãos. Os que vão concorrer às eleições em 2026 provavelmente não serão os mesmo daqui a dez anos. O sonho é construir instituições para além dos partidarismos e personalismos de ocasião.

 

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