Valor Econômico
Tudo indica que a massa das vítimas da
criminalidade desorganizada e artesanal não tem defesas para se proteger ou
para reagir
As ocorrências trágicas do Rio de Janeiro, em
dias passados, com seus numerosos mortos, expõem indícios da gravíssima
situação da ordem social, mas também da ordem política, no Brasil.
O país está mergulhado em profundo estado de
anomia, regulado por normas sociais que não funcionam e por normas antissociais
que funcionam ao contrário do que se necessita para ter ordem.
É equívoco e ilusão pensar que se trata de um embate entre polícia e criminosos do crime organizado. Há outras personagens nesse cenário. Ao dar uma visibilidade meramente repressiva ao seu trabalho, as polícias estão deixando de lado o crime desorganizado. O que se manifesta nas ações criminosas que aterrorizam a população na vida cotidiana, sem letalidade. Para essa vítima, é essa modalidade de crime que mais preocupa.
Já não se trata do criminoso pé de chinelo,
do ladrão de galinha, do batedor de carteira, o autor do conto do vigário. Os
delinquentes de comédia. Como os que eram atores, sobretudo quando atuavam no
sentido de induzir os curiosos, que na rua cercavam o vendedor de qualquer
bagulho, a comprá-lo para remover verruga ou tratar de unha encravada.
O pequeno criminoso evoluiu, aperfeiçoou-se,
domina computador, internet, técnicas de cometimento silencioso de violência.
Não é mais apenas o criminoso que age perto da vítima, mas também o que age à
distância. O que usa celular ou o computador, que por esse meio entra na casa
dos outros, acessa sua biografia, sua conta bancária, suas disponibilidades e
suas fragilidades.
Somos um povo caracterizado por desencontros
culturais de imensos abismos de conhecimento decorrentes de modos de vida
diversificados e distantes do que é dominante.
Todos os mecanismos de informação e de
proteção contra o crime estão dominados por uma visão seletiva de classe média
da realidade social. Tudo indica que a massa das vítimas da criminalidade
desorganizada e artesanal não tem defesas para se proteger ou para reagir
nesses casos.
Gentes habituadas a viver em sociabilidade de
grupos fechados, de interação face a face, com conhecidos e parentes, ficam
fora do alcance de medidas que supostamente devem proteger também a elas. Com a
pós-modernidade passaram a viver, simultânea e residualmente, em grupos abertos
com anônimos e desconhecidos que manejam técnicas teatrais de sociabilidade e
dominação.
É claro que o crime organizado, como mostrou
o caso destes dias, no Rio, é de sofisticadas empresas de criminalidade. Os
criminosos são funcionários do crime, com mentalidade de empreendedor,
tecnologia, equipamentos e armas próprios de organizações policiais e
militares, instituições do Estado. Portanto, é compreensível o tamanho e o
impacto da repressão. O crime organizado declarou guerra ao Brasil. E na guerra
como na guerra.
Justamente por isso, fica difícil compreender
a conspiração dos governadores de direita no sentido de agir como pátria
separada na organização de uma confederação policial para enfrentar o crime
organizado. Trata-se de um esboço de secessão, uma atitude separatista e
antinacional.
Vítima do crime organizado é o Brasil
inteiro. Não há recanto do país que não o tenha presente e ativo. Os primeiros
dados revelados sobre a identidade e o perfil dos mortos de agora indicam que
vários eram originários de outros estados, que não estão na conspiração
repressiva de direita.
O poder nacional sobrepõe-se ao das unidades
da federação. O governo federal é que tem as condições para coordenar as
medidas de articulação da defesa da população inteira, como lembrou em
entrevista à Globo News o sempre lúcido ex-ministro da Defesa Raul Jungman.
Mais ainda, falta um Ministério da Segurança,
como insiste Benedito Mariano, outro conhecido especialista no assunto.
Um ministério que enfrentasse de vez, na
escala correta, em todos os âmbitos, do local ao nacional, a violência e a
criminalidade. Que superasse de vez a vigilância e a repressão do varejo
oligárquico dos régulos de província. Um ministério que incluísse a
criminalidade cotidiana, organizada e não organizada, que protegesse contra a
guerra toda a população. Que a protegesse, também, contra preconceitos e
discriminações que criminalizam o que crime não é. Um ministério que abrangesse
cientificamente atividades pedagógicas de prevenção e combate ao crime,
qualquer que seja ele.
Não se pode deixar de investigar a
benevolência e o favorecimento do governo anterior em relação ao acesso a armas
e munições. Quanto e o que daquelas armas e instrumentos de violência vistas
nas reportagens das ocorrências do Rio são provenientes dessas facilitações? A
segurança aumentou com a facilitação do acesso às armas? Para quem?

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