O Globo
Se há um problema com o Judiciário
brasileiro, é seu poder excessivo, não sua fragilidade institucional
“O Poder Judiciário no Brasil é o mais forte
do mundo. Não há no mundo um Poder Judiciário tão forte quanto o do Brasil.” A
afirmação, feita pelo ministro Alexandre de Moraes na última terça-feira,
deveria servir de ponto de partida para qualquer debate sério sobre as relações
entre os Poderes no país. Se há um problema com o Judiciário brasileiro, é seu
poder excessivo, não sua fragilidade institucional.
Na quarta-feira, o ministro Gilmar Mendes concedeu medida cautelar que suspende e reinterpreta dispositivos da Lei do Impeachment, estabelecendo procedimentos restritivos para o impedimento de magistrados. A medida implode o sistema de freios e contrapesos, minando o controle externo do Judiciário.
O ministro fundamenta sua decisão na defesa
da independência do Judiciário e no combate ao que chama de “constitucionalismo
abusivo” — o uso de processos políticos como retaliação a decisões judiciais. O
argumento central é que a divergência na interpretação da lei é algo inerente
ao Direito e não pode ser tratada como crime de responsabilidade.
A medida traz mudanças expressivas no rito do
impeachment de ministros do Supremo, tornando o processo difícil de instaurar.
Antes, qualquer cidadão poderia oferecer denúncia contra um ministro; agora, apenas
a Procuradoria-Geral da República tem legitimidade para isso. O mérito de
decisões não pode mais ser usado para caracterizar crime de responsabilidade e,
assim, a discordância com sentenças não pode mais ser motivo para impeachment.
O quórum para instaurar o processo no Senado foi elevado de maioria simples a
maioria qualificada de dois terços (54 votos). Por fim, caso o impeachment seja
admitido, os ministros não serão mais afastados automaticamente do cargo, nem
seus vencimentos serão reduzidos durante o julgamento.
O Estado brasileiro — como todas as
democracias constitucionais modernas — funciona com base no sistema de freios e
contrapesos: cada Poder controla e limita o outro para evitar abusos. O
Executivo cumpre as leis do Legislativo, segue os marcos constitucionais
indicados pelo Judiciário e, no limite, está sujeito a impeachment; o
Legislativo fiscaliza o Executivo e é duplamente controlado, pelo veto
presidencial e pelo controle judicial de constitucionalidade; finalmente, o
Judiciário é composto por indicações políticas do Executivo, referendadas pelo
Legislativo, é controlado por mecanismos administrativos e disciplinares e, em
última instância, externamente pelo impeachment.
O voto de Gilmar reconstrói a história do
instituto do impeachment. Mostra justamente que ele nasceu para lidar com
condutas que, embora possam se dar por meio de atos jurisdicionais, representam
desvio grave da função. As fórmulas propostas na Convenção da Filadélfia (que
redigiu a Constituição americana) falavam em má prática e negligência no
cumprimento do dever, em incapacidade ou perfídia. Essa redação, porém, foi
rejeitada. A redação final fala em crimes elevados e contravenções (high crimes and misdemeanors) —
expressão aberta justamente para abarcar diferentes tipos de conduta que
corroem a integridade do cargo. É essa compreensão ampla que inspira a Lei
1.079/1950. Ela define os crimes de responsabilidade e enumera condutas como
abuso de poder, violação da Constituição e atos incompatíveis com dignidade,
honra e decoro do cargo.
Se aceitarmos que qualquer decisão judicial
está automaticamente imune ao impeachment, mesmo quando distorce provas, ignora
o texto constitucional de forma consciente, usa o cargo para perseguir
adversários, viola direitos fundamentais de forma deliberada, então o tipo de
conduta que a tradição democrática busca impedir escapa a qualquer tipo de
responsabilização e controle.
A decisão de Gilmar insiste que as garantias
da magistratura — vitaliciedade, inamovibilidade, irredutibilidade de
vencimentos — são “escudos protetivos” indispensáveis para preservar a
independência judicial e a separação de Poderes. Essas garantias já existem e
já colocam os ministros em posição institucionalmente robusta. Ao acrescentar
uma blindagem extra, em que decisões abusivas não podem ser responsabilizadas e
o acesso ao impeachment é dificultado, o STF passa de Poder independente a algo
muito próximo de um Poder que não pode ser controlado.

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