sexta-feira, 5 de dezembro de 2025

Gilmar Mendes implode sistema de contrapesos, por Pablo Ortellado

O Globo

Se há um problema com o Judiciário brasileiro, é seu poder excessivo, não sua fragilidade institucional

“O Poder Judiciário no Brasil é o mais forte do mundo. Não há no mundo um Poder Judiciário tão forte quanto o do Brasil.” A afirmação, feita pelo ministro Alexandre de Moraes na última terça-feira, deveria servir de ponto de partida para qualquer debate sério sobre as relações entre os Poderes no país. Se há um problema com o Judiciário brasileiro, é seu poder excessivo, não sua fragilidade institucional.

Na quarta-feira, o ministro Gilmar Mendes concedeu medida cautelar que suspende e reinterpreta dispositivos da Lei do Impeachment, estabelecendo procedimentos restritivos para o impedimento de magistrados. A medida implode o sistema de freios e contrapesos, minando o controle externo do Judiciário.

O ministro fundamenta sua decisão na defesa da independência do Judiciário e no combate ao que chama de “constitucionalismo abusivo” — o uso de processos políticos como retaliação a decisões judiciais. O argumento central é que a divergência na interpretação da lei é algo inerente ao Direito e não pode ser tratada como crime de responsabilidade.

A medida traz mudanças expressivas no rito do impeachment de ministros do Supremo, tornando o processo difícil de instaurar. Antes, qualquer cidadão poderia oferecer denúncia contra um ministro; agora, apenas a Procuradoria-Geral da República tem legitimidade para isso. O mérito de decisões não pode mais ser usado para caracterizar crime de responsabilidade e, assim, a discordância com sentenças não pode mais ser motivo para impeachment. O quórum para instaurar o processo no Senado foi elevado de maioria simples a maioria qualificada de dois terços (54 votos). Por fim, caso o impeachment seja admitido, os ministros não serão mais afastados automaticamente do cargo, nem seus vencimentos serão reduzidos durante o julgamento.

O Estado brasileiro — como todas as democracias constitucionais modernas — funciona com base no sistema de freios e contrapesos: cada Poder controla e limita o outro para evitar abusos. O Executivo cumpre as leis do Legislativo, segue os marcos constitucionais indicados pelo Judiciário e, no limite, está sujeito a impeachment; o Legislativo fiscaliza o Executivo e é duplamente controlado, pelo veto presidencial e pelo controle judicial de constitucionalidade; finalmente, o Judiciário é composto por indicações políticas do Executivo, referendadas pelo Legislativo, é controlado por mecanismos administrativos e disciplinares e, em última instância, externamente pelo impeachment.

O voto de Gilmar reconstrói a história do instituto do impeachment. Mostra justamente que ele nasceu para lidar com condutas que, embora possam se dar por meio de atos jurisdicionais, representam desvio grave da função. As fórmulas propostas na Convenção da Filadélfia (que redigiu a Constituição americana) falavam em má prática e negligência no cumprimento do dever, em incapacidade ou perfídia. Essa redação, porém, foi rejeitada. A redação final fala em crimes elevados e contravenções (high crimes and misdemeanors) — expressão aberta justamente para abarcar diferentes tipos de conduta que corroem a integridade do cargo. É essa compreensão ampla que inspira a Lei 1.079/1950. Ela define os crimes de responsabilidade e enumera condutas como abuso de poder, violação da Constituição e atos incompatíveis com dignidade, honra e decoro do cargo.

Se aceitarmos que qualquer decisão judicial está automaticamente imune ao impeachment, mesmo quando distorce provas, ignora o texto constitucional de forma consciente, usa o cargo para perseguir adversários, viola direitos fundamentais de forma deliberada, então o tipo de conduta que a tradição democrática busca impedir escapa a qualquer tipo de responsabilização e controle.

A decisão de Gilmar insiste que as garantias da magistratura — vitaliciedade, inamovibilidade, irredutibilidade de vencimentos — são “escudos protetivos” indispensáveis para preservar a independência judicial e a separação de Poderes. Essas garantias já existem e já colocam os ministros em posição institucionalmente robusta. Ao acrescentar uma blindagem extra, em que decisões abusivas não podem ser responsabilizadas e o acesso ao impeachment é dificultado, o STF passa de Poder independente a algo muito próximo de um Poder que não pode ser controlado.

 

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