“Cuidemos. A República pode afundar.”
– Manuel Domingos Neto
Sinal dos tristes tempos: devemos comemorar a suspensão por seis meses do
mandato do deputado Glauber Braga, decretada pelo plenário da Câmara Federal na
última quarta-feira (10/12/2025). No dia anterior, por ordem do presidente da
Casa, ele fôra agredido por gendarmes da polícia legislativa.
As hosanas são justificadas porque o corretivo previamente decidido pela
direita era a pura e simples cassação do mandato do parlamentar fluminense,
cumulada com oito anos de inelegibilidade — sua virtual expulsão da vida
pública, que ele tanto dignifica. Antes disso, pelas artes e sortilégios
de Artur Lira – dublê de capo e feiticeiro –, Glauber era
submetido ao Conselho de Ética. Nada ouviu ali que merecesse ser tomado como
acusação séria, mas teve a perda do mandato indicada. A espada de Dâmocles pesa
sobre sua cabeça desde março.
A reunião do Conselho era um teatro farsesco, como deveria ser o
julgamento em plenário: ambos montados com script pré-definido para cumprir
formalidades regimentais exigidas para sancionar uma sentença previamente
lavrada. Uma vindita anunciada, concebida no melhor estilo siciliano. Não faltou,
sequer, o Don Corleone de ocasião. O pretexto alegado, à falta de algo melhor,
foi um pontapé — aliás, muito bem dado — por Glauber em canalha assalariado
pela direita para insultar sua mãe, então no leito de morte.
O pontapé era apenas um pretexto, mas pretexto necessário. O que se
pretendia, como ficou evidente nos discursos da direita, era punir o “conjunto
da obra”: o mandato socialista de Glauber, bravo, corajoso, limpo, denunciador
da miséria do sistema e também das vigarices do submundo parlamentar — entre
elas o “orçamento secreto”, peça de corrupção explícita engendrada
por Arthur Lira.
Daí o coronel alagoano haver assumido o papel de arqui-inimigo de
Glauber Braga, regendo uma orgia de ressentimentos e intolerância,
a base paranoide do pensamento fascista.
É preciso ver em Glauber um alvo-símbolo escolhido a dedo. A vingança contra
seu mandato visa a constranger o conjunto da esquerda, e assim deve ser vista e
enfrentada. Não é acaso que, na mesma sessão que o condenou, o plenário tenha absolvido
a delinquente Carla Zambelli, ainda deputada por São Paulo (do PL,
evidentemente), já condenada pelo STF a penas que somam 15 anos de prisão, por
invasão ao sistema eletrônico do CNJ, porte ilegal de arma e assédio.
Refugiou-se na Itália, onde está presa e aguarda extradição. Imunes e impunes,
como ela, permanecem outros “fora da lei”: o ex-policial federal Alexandre
Ramagem (também deputado pelo PL), condenado pelo STF como partícipe da trama
golpista, demitido por Lewandowski e homiziado nos EUA; e sua parelha, o
deputado Eduardo Bolsonaro (PL), conspirando desde fevereiro contra os
interesses nacionais, promovendo lobby junto à Casa Branca para impor sanções a
autoridades brasileiras e às nossas exportações — o “tarifaço” de Trump.
Crime de lesa-pátria, grave, e nada obstante impune.
Não é mera coincidência o encontro da violência contra Glauber com a anistia
disfarçada de “dosimetria”.
Na mesma noite em que o deputado era agredido pela polícia legislativa
(09/12), a mesma Câmara aprovava insólita e inaceitável redução geral de
penas que pode abrir caminho para uma anistia aos golpistas de 8 de janeiro de
2023. Mais uma ameaça à democracia; mais uma negociata entre costureiros da
pequena política, senhores de baraço e cutelo de um Congresso perjuro que se
requinta no reacionarismo, na deslealdade à República e no desprezo à
democracia — esquecido de que, quando o edifício democrático cai, seus
destroços soterram o Parlamento.
Lembrai-vos de 1937.
A proposta de anistia aos golpistas, que entrou na pauta com o codinome
“dosimetria” para apaziguar o Centrão e recolocá-lo no redil da
extrema-direita, foi o preço pago à chantagem explícita da autocandidatura do
filho do capitão. Traficada por Hugo Motta, delfim de Lira e sucessor
político inexcedível Eduardo Cunha. No Senado, o projeto já
corre célere. O relator, filhote da ditadura, mãos dadas com o inefável
Paulinho da Força (réu em processo criminal no DF), declarou não descartar uma
anistia “ampla, geral e irrestrita”. Seria a reabilitação do golpismo, a pá de
cal na responsabilidade democrática afirmada pelo STF, o anúncio da
bolsonarização da política — a nos dizer que o fundo do poço esconde outro
poço.
Enquanto a Câmara promovia essa deslealdade contra a República, o Senado
aprovava, em dois turnos, a PEC que restringe os direitos dos povos originários
a áreas ocupadas ou litigiosas até 1988. Vitória do bilionário lobby do
agronegócio, que se confunde com grilagem, depredação ambiental e mineração
criminosa com o business que habita a Faria Lima, que dialoga
com o submundo do Comando Vermelho e com a superestrutura legal do crime
organizado.
Como lembra meu amigo Fernando Mousinho, o 8 de Janeiro não terminou. O ciclo
de golpes de Estado vem de antes: inaugura-se com o impeachment de Dilma Rousseff,
atravessa o impedimento de Lula de concorrer em 2018, chega à intentona
fascista de 2023 e prossegue até agora, com ímpeto de seguir em frente. Tudo
sob o manto das “quatro linhas da Constituição”, isto é, golpes operados dentro
do poder, sem baionetas à mostra.
O ministro do Exército, general Villas Bôas, intimidou o STF a não
conceder habeas corpuspreventivo a Lula para impedir sua candidatura em
2018. E assim o líder das pesquisas foi excluído do pleito. Tudo “dentro da
ordem”. O que se seguiu é sabido. A intentona de 2023 faz parte do mesmo
processo. Nada obstante a eleição de Lula em 2022, vivemos sob o mesmo ciclo
golpista continuado, regido por maioria parlamentar empenhada na erosão da
democracia.
O episódio Glauber Braga se insere na ofensiva de domínio da vida congressual
pela extrema-direita, cuja tática é entravar o governo Lula e perseguir quadros
da centro-esquerda. Opera-se por todos os meios, a começar pela captura do
Orçamento da União, que cerceia o Executivo, pulveriza e malversa os recursos
públicos. Essa prática ilícita, constitucionalmente vedada, consolidou-se como
mecanismo de distribuição de emendas individuais, emendas de bancada e emendas
“de relator remodeladas”, todas de execução opaca, todas a serviço do
patrimonialismo rasteiro, do mandonismo local, do clientelismo político, da
corrupção administrativa, da mentira eleitoral que destrói a legitimidade da
representação popular, sem a qual não há República digna de honesta
consideração.
O objetivo é o financiamento da renovação de mandatos parlamentares às
custas do erário.
Veja-se o orçamento de 2025: ao governo federal são alocados R$ 170,7 bilhões
em despesas não obrigatórias (tudo o que pode gerir com alguma liberdade
na gerência de seus projetos) enquanto as emendas impositivas (destinadas
pelos parlamentares aos seus currais eleitorais, consomem R$ 50,4
bilhões. Some-se o Fundo Partidário (R$ 1,319 bilhão) e, em ano eleitoral, o
Fundo Especial de Financiamento de Campanhas (R$ 4,962 bilhões em 2024). Quanto
será em 2026?
A maioria de direita ainda procura intimidar o STF, ameaçando reduzir suas
competências constitucionais e abrir processos de impeachment contra seus
ministros. No Senado, seu presidente, dado a traquinagens de aprendiz de
feiticeiro, tenta interferir na indicação do novo ministro do STF — prerrogativa
do presidente da República. Diz-se amuado. Com maioria absoluta nas duas Casas,
a direita deixa claro que pode interromper qualquer programa de governo e até
depor o presidente da República sem “firulas jurídicas”. No mercado correm as
listas de juristas como Miguel Reale Filho e paus-para-toda-obra do porte de
Eduardo Cunha. Dilma bem que poderia ajudar, escrevendo suas memórias.
* * *
Mulher de César — A modernidade atribui a César uma frase que não ditou (o
conteúdo remete a Plutarco e Suetônio), traduzida para o vernáculo como: “Para
a mulher de César, não basta ser séria; é preciso parecer séria.” O conteúdo é
ético, mas profundamente político: das instituições e dos servidores públicos —
governantes, legisladores, juízes, ministros, diplomatas, militares — exige-se
não apenas competência e decoro, mas o afastamento de situações que possam
suscitar suspeitas. A norma vale para o Legislativo, mas também para o
Executivo, para o Judiciário, e mais ainda, para o STF, tão central hoje na
defesa da República. O ministro Dias Toffoli, porém, rejeita esse preceito. A
sociedade e seus pares esperam que explique o que fazia no jatinho particular
que o levou a Lima para a final da Libertadores, na companhia de advogado que
atua no STF como patrono dos interesses do Banco Master. E que, para o bem do
processo, se declare impedido de relatar as investigações sobre o banco.
Piratas no Caribe — Em que corte internacional os EUA de Trump serão
julgados pelo roubo de um navio-tanque da Venezuela na costa daquele país —
roubo que os jornais têm apelidado, gentilmente, de “apreensão”? Ou o crime de
pirataria só ocorre no nas águas da Somália?
* Com a colaboração de Pedro Amaral

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