domingo, 28 de dezembro de 2025

Sobre democracia e moralidade. Lourival Sant’Anna

O Estado de S. Paulo

Abusos são justificáveis para quem os comete, e vê como condenável sua denúncia

EUA e Brasil, as duas maiores democracias presidencialistas, enfrentam crise de legitimidade decorrente de concentração e denúncias de abuso de poder – na presidência americana e na Suprema Corte brasileira.

A polarização serve de amortecedor contra as denúncias de malfeitos, ao deslocar o critério de legitimidade dos princípios éticos para o alinhamento político. Faltam freios e contrapesos robustos o suficiente para conter pessoas que priorizam o dinheiro em detrimento da própria reputação.

Como acordo de damas e cavalheiros, o presidencialismo se alicerça na premissa de que autoridades em altas posições da república seriam dotadas de vergonha. Essa premissa já não é necessariamente válida. Os freios e contrapesos podem e devem ser reforçados.

As cortes supremas de EUA, Canadá e Reino Unido, por exemplo, adotaram códigos de conduta e mecanismos de supervisão ou controle externo. Mas nenhum mecanismo parece suficiente em face do que poderia ser considerado uma degradação moral sistêmica.

Tanto nos EUA quanto no Brasil, Executivo, Legislativo e Judiciário foram capturados pelo centro gravitacional do poder – no caso americano, o presidente; no brasileiro, o STF. Esse ambiente foi facilitado pelo rebaixamento intelectual do debate político.

As discussões sobre liberdade e ética, princípios basilares da civilização, foram contaminadas pelo sectarismo. Segundo essa lógica binária, a fonte de legitimidade não está no respeito às regras democráticas e éticas, mas no campo político ideológico que o líder ocupa.

Isso deu a alguns (não todos) integrantes dos três Poderes, no governo e oposição, proteção reputacional para atropelar os limites da democracia e da ética, conspirando para se manter no poder apesar de derrota eleitoral, ou usar o cargo em benefício próprio, ignorando o conflito de interesses.

Abusos são justificáveis para quem os comete, e vê como condenável sua denúncia. Criou-se a crença de que é preciso escolher entre democracia e moralidade, como se não houvesse corrupção nas ditaduras, e a defesa do Estado de Direito fosse licença para desvio de conduta.

Mesmo quem percebe o absurdo de ter de escolher entre democracia e moralidade acaba se resignando a esse dilema porque não encontra espaço para reconstruir a ponte entre os dois princípios. O que fazer diante da armadilha? Rejeitar um debate em que valores dependam de lados e de pessoas, e recriar espaços de discussão nos quais liberdade e honestidade voltem a ser vistos como igualmente indispensáveis. •

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