O Estado de S. Paulo
Abusos são justificáveis para quem os comete, e vê como condenável sua denúncia
EUA e Brasil, as duas maiores democracias
presidencialistas, enfrentam crise de legitimidade decorrente de concentração e
denúncias de abuso de poder – na presidência americana e na Suprema Corte
brasileira.
A polarização serve de amortecedor contra as denúncias de malfeitos, ao deslocar o critério de legitimidade dos princípios éticos para o alinhamento político. Faltam freios e contrapesos robustos o suficiente para conter pessoas que priorizam o dinheiro em detrimento da própria reputação.
Como acordo de damas e cavalheiros, o
presidencialismo se alicerça na premissa de que autoridades em altas posições
da república seriam dotadas de vergonha. Essa premissa já não é necessariamente
válida. Os freios e contrapesos podem e devem ser reforçados.
As cortes supremas de EUA, Canadá e Reino
Unido, por exemplo, adotaram códigos de conduta e mecanismos de supervisão ou
controle externo. Mas nenhum mecanismo parece suficiente em face do que poderia
ser considerado uma degradação moral sistêmica.
Tanto nos EUA quanto no Brasil, Executivo, Legislativo e Judiciário foram capturados pelo centro gravitacional do poder – no caso americano, o presidente; no brasileiro, o STF. Esse ambiente foi facilitado pelo rebaixamento intelectual do debate político.
As discussões sobre liberdade e ética,
princípios basilares da civilização, foram contaminadas pelo sectarismo.
Segundo essa lógica binária, a fonte de legitimidade não está no respeito às
regras democráticas e éticas, mas no campo político ideológico que o líder
ocupa.
Isso deu a alguns (não todos) integrantes dos
três Poderes, no governo e oposição, proteção reputacional para atropelar os
limites da democracia e da ética, conspirando para se manter no poder apesar de
derrota eleitoral, ou usar o cargo em benefício próprio, ignorando o conflito
de interesses.
Abusos são justificáveis para quem os comete,
e vê como condenável sua denúncia. Criou-se a crença de que é preciso escolher
entre democracia e moralidade, como se não houvesse corrupção nas ditaduras, e
a defesa do Estado de Direito fosse licença para desvio de conduta.
Mesmo quem percebe o absurdo de ter de
escolher entre democracia e moralidade acaba se resignando a esse dilema porque
não encontra espaço para reconstruir a ponte entre os dois princípios. O que
fazer diante da armadilha? Rejeitar um debate em que valores dependam de lados
e de pessoas, e recriar espaços de discussão nos quais liberdade e honestidade
voltem a ser vistos como igualmente indispensáveis. •

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