O Globo
“O Brasil no espelho” é uma importante
contribuição ao entendimento da sociedade brasileira
No recém-lançado “O Brasil no espelho” (Globo
Livros), Felipe Nunes apresenta um amplo estudo sobre os valores dos
brasileiros, baseado em pesquisa conduzida pela Quaest a pedido da TV Globo. A
obra joga luz sobre o que os brasileiros pensam sobre fé, família, arranjos
familiares, confiança e segurança, oferecendo um retrato detalhado que ajuda a
compreender não apenas o que pensam, mas por que pensam assim.
O livro traz mais dados interessantes do que é possível relatar aqui. Alguns reforçam informações conhecidas por outras pesquisas, outros permitem ver o que já se sabia sob outra perspectiva — algumas informações, porém, são inteiramente novas.
A tese principal é que família e fé unem o
Brasil. Embora 14% dos brasileiros não tenham religião, quase todos (96%)
acreditam que “Deus está no comando”, sugerindo uma religiosidade latente mesmo
entre os não religiosos. Outra unanimidade é a centralidade da família. O mesmo
percentual de 96% concorda que “A família é a coisa mais importante da vida”.
O livro mostra um Brasil que rejeita o
racismo, razoavelmente reconhece os direitos das mulheres (embora não reconheça
o machismo), mas ainda tem muita dificuldade em aceitar a homossexualidade.
Aparentemente a maioria dos brasileiros aceita que seja praticada entre quatro
paredes (95% concordam que a vida sexual de alguém não interessa a mais
ninguém), mas tem dificuldade em lidar com sua expressão pública (66% acham que
homem gay não precisa ser afeminado, e 43% se incomodam em ver gays e lésbicas
se beijando). Apenas 52% aceitam o casamento do mesmo sexo (ao mesmo tempo, 75%
concordam que o casamento é a união de quem se ama, independentemente do
gênero).
O livro propõe dois tipos de recortes novos
para entender o Brasil. O primeiro é por gerações. Nunes prefere nomear as
gerações de acordo com a experiência nacional brasileira, mas o recorte
temporal corresponde aproximadamente à convenção internacional: geração Bossa
Nova (geração Boomer), geração Ordem e Progresso (geração X), geração
redemocratização (millennials ou geração Y) e a geração .com (geração Z). Entre
os traços de diferença geracional mais interessantes, vemos as gerações mais
novas trocar o catolicismo por denominações evangélicas e também por outras
religiões. Descobrimos também que as mais jovens ficam menos de direita (a mais
jovem é curiosamente mais de centro) e com orientação não heterossexual mais
frequente (11% da geração .com é bissexual).
A principal contribuição teórica do livro é
apresentar uma divisão da sociedade brasileira em nove segmentos: militantes de
esquerda, progressistas, dependentes do Estado, liberais sociais,
empreendedores individuais, conservadores cristãos, agro, empresários e extrema
direita. Uma divisão semelhante havia aparecido rapidamente no livro anterior
de Nunes (com Thomas Traumann, “Biografia do abismo”), mas aqui ela ganha um
novo segmento e é apresentada em mais detalhes.
A nomeação dos grupos e sua complexidade
sugerem uma tipologia fina dos agrupamentos que compõem a sociedade brasileira.
A divisão mostra agrupamentos sociais com tendências políticas —militantes de
esquerda, progressistas e dependentes do Estado, com inclinações de esquerda;
empreendedores, conservadores, agro, empresários e extrema direita, com
inclinações de direita; e liberais sociais, com inclinação de centro. Essas
tendências políticas parecem se encaixar com ocupações e situações sociais como
as que separam pequenos empreendedores, empresários, trabalhadores do campo e
fazendeiros (agro) e pobres que recebem Bolsa Família (dependentes do Estado).
Embora tenhamos no livro algumas pistas de como esses segmentos foram
construídos e a apresentação de algumas de suas características, Nunes segue
devendo uma descrição mais detalhada para avaliarmos a força do modelo — quem
sabe mereça um artigo acadêmico?
Uma observação formal: o livro poderia ter
tido revisão mais cuidadosa. Muitas tabelas não apresentam as perguntas, e o
leitor é obrigado a inferi-las do texto. Algumas discussões levam o autor a
citar dados de outras fontes (como IBGE ou pesquisa “World values survey”), e
nem sempre a fonte mencionada num determinado trecho é clara, gerando dúvida.
“O Brasil no espelho” é uma importante
contribuição ao entendimento da sociedade brasileira. Ele organiza um volume
impressionante de informações e propõe chaves interpretativas novas que podem
ajudar o país a redefinir seu caminho depois de olhar com atenção para si
mesmo.
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