sexta-feira, 12 de dezembro de 2025

Unidos pela fé, divididos pela política. Por Pablo Ortellado

O Globo

“O Brasil no espelho” é uma importante contribuição ao entendimento da sociedade brasileira

No recém-lançado “O Brasil no espelho” (Globo Livros), Felipe Nunes apresenta um amplo estudo sobre os valores dos brasileiros, baseado em pesquisa conduzida pela Quaest a pedido da TV Globo. A obra joga luz sobre o que os brasileiros pensam sobre fé, família, arranjos familiares, confiança e segurança, oferecendo um retrato detalhado que ajuda a compreender não apenas o que pensam, mas por que pensam assim.

O livro traz mais dados interessantes do que é possível relatar aqui. Alguns reforçam informações conhecidas por outras pesquisas, outros permitem ver o que já se sabia sob outra perspectiva — algumas informações, porém, são inteiramente novas.

A tese principal é que família e fé unem o Brasil. Embora 14% dos brasileiros não tenham religião, quase todos (96%) acreditam que “Deus está no comando”, sugerindo uma religiosidade latente mesmo entre os não religiosos. Outra unanimidade é a centralidade da família. O mesmo percentual de 96% concorda que “A família é a coisa mais importante da vida”.

O livro mostra um Brasil que rejeita o racismo, razoavelmente reconhece os direitos das mulheres (embora não reconheça o machismo), mas ainda tem muita dificuldade em aceitar a homossexualidade. Aparentemente a maioria dos brasileiros aceita que seja praticada entre quatro paredes (95% concordam que a vida sexual de alguém não interessa a mais ninguém), mas tem dificuldade em lidar com sua expressão pública (66% acham que homem gay não precisa ser afeminado, e 43% se incomodam em ver gays e lésbicas se beijando). Apenas 52% aceitam o casamento do mesmo sexo (ao mesmo tempo, 75% concordam que o casamento é a união de quem se ama, independentemente do gênero).

O livro propõe dois tipos de recortes novos para entender o Brasil. O primeiro é por gerações. Nunes prefere nomear as gerações de acordo com a experiência nacional brasileira, mas o recorte temporal corresponde aproximadamente à convenção internacional: geração Bossa Nova (geração Boomer), geração Ordem e Progresso (geração X), geração redemocratização (millennials ou geração Y) e a geração .com (geração Z). Entre os traços de diferença geracional mais interessantes, vemos as gerações mais novas trocar o catolicismo por denominações evangélicas e também por outras religiões. Descobrimos também que as mais jovens ficam menos de direita (a mais jovem é curiosamente mais de centro) e com orientação não heterossexual mais frequente (11% da geração .com é bissexual).

A principal contribuição teórica do livro é apresentar uma divisão da sociedade brasileira em nove segmentos: militantes de esquerda, progressistas, dependentes do Estado, liberais sociais, empreendedores individuais, conservadores cristãos, agro, empresários e extrema direita. Uma divisão semelhante havia aparecido rapidamente no livro anterior de Nunes (com Thomas Traumann, “Biografia do abismo”), mas aqui ela ganha um novo segmento e é apresentada em mais detalhes.

A nomeação dos grupos e sua complexidade sugerem uma tipologia fina dos agrupamentos que compõem a sociedade brasileira. A divisão mostra agrupamentos sociais com tendências políticas —militantes de esquerda, progressistas e dependentes do Estado, com inclinações de esquerda; empreendedores, conservadores, agro, empresários e extrema direita, com inclinações de direita; e liberais sociais, com inclinação de centro. Essas tendências políticas parecem se encaixar com ocupações e situações sociais como as que separam pequenos empreendedores, empresários, trabalhadores do campo e fazendeiros (agro) e pobres que recebem Bolsa Família (dependentes do Estado). Embora tenhamos no livro algumas pistas de como esses segmentos foram construídos e a apresentação de algumas de suas características, Nunes segue devendo uma descrição mais detalhada para avaliarmos a força do modelo — quem sabe mereça um artigo acadêmico?

Uma observação formal: o livro poderia ter tido revisão mais cuidadosa. Muitas tabelas não apresentam as perguntas, e o leitor é obrigado a inferi-las do texto. Algumas discussões levam o autor a citar dados de outras fontes (como IBGE ou pesquisa “World values survey”), e nem sempre a fonte mencionada num determinado trecho é clara, gerando dúvida.

“O Brasil no espelho” é uma importante contribuição ao entendimento da sociedade brasileira. Ele organiza um volume impressionante de informações e propõe chaves interpretativas novas que podem ajudar o país a redefinir seu caminho depois de olhar com atenção para si mesmo.

 

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