quinta-feira, 17 de julho de 2008

DEU EM O GLOBO


TEATRO DE ABSURDOS
Míriam Leitão


O Brasil não vive uma crise institucional. Vive um surto de nonsense desde o começo do caso do banqueiro Daniel Dantas. A entrevista conjunta do presidente do Supremo e do ministro da Justiça, depois de ambos levarem uma chamada do presidente Lula, foi um despropósito institucional. O presidente do STF não é um dos ministros de Lula; não é subordinado ao chefe do Executivo.

Para falar uma expressão tão em voga: nada disso é republicano. Já que a República, como se sabe, assenta-se na independência dos poderes. A queda-de-braço entre o presidente do STF, Gilmar Mendes, e um juiz de primeira instância; a fratura exposta da Polícia Federal; o bate-boca entre Gilmar Mendes e o ministro Tarso Genro; a nota de Gilberto Carvalho negando o que sua própria voz dizia na gravação; e a justificativa para o afastamento do delegado que dirigia a investigação são flagrantes de um teatro de absurdos.

Alguém acreditou na explicação de Tarso Genro para a saída do delegado Protógenes Queiroz? Nem o chefe dele, o presidente Lula, que ontem disse que o delegado tem de voltar à função. A justificativa havia sido a seguinte: ele saiu porque todo delegado, após dez anos, tem que fazer um curso de reciclagem, e ele até entrou na Justiça pelo direito de fazer o tal curso. Ora, ou bem é uma rotina profissional, ou ele brigou na Justiça para fazer o curso. É um desrespeito à inteligência alheia uma explicação assim tão pedestre. Se o chefe da PF acha que ele é "descontrolado", como diria o advogado Luiz Eduardo Greenhalgh, tinha que ter sido transparente e explicado que erros o delegado supostamente cometeu. Agora está na constrangedora situação de voltar atrás.

O risco na atrapalhada maneira com que o governo lida com esta crise é esquecer-se do principal, que é sustentar com provas sólidas as acusações feitas aos envolvidos: lavagem de dinheiro, gestão fraudulenta, evasão de divisas. A tentativa de suborno de um policial é crime; cometido para acobertar os outros pelos quais eles estavam sendo investigados. A gestão fraudulenta de instituição financeira tem que ser avaliada e investigada pelo Banco Central também, como alertou, em artigo no GLOBO, o empresário Roberto Teixeira da Costa. A resposta dada pelo presidente do BC, Henrique Meirelles, ao senador Aloizio Mercadante é outro despropósito. Mercadante disse que ou a PF está exagerando quando fala em "gestão fraudulenta" ou houve omissão do Banco Central. Meirelles, ao responder, comparou o caso do Opportunity a um "funcionário de banco que comete crime nas horas vagas". Uma resposta espantosa: o BC tem que ter algo a dizer e a fazer neste caso.

O presidente Lula tem feito contorcionismos para defender Gilberto Carvalho. A uma repórter que perguntou ontem sobre a estranha conversa entre Carvalho e o advogado de Daniel Dantas, Lula respondeu: "Se você me telefonar, quem vai atender é o Gilberto Carvalho. Peço a Deus que seu telefonema não esteja sendo gravado, pois pode aparecer a sua conversa com Gilberto Carvalho." O fato de o secretário ser o filtro para telefonemas para o presidente é rotina em qualquer Presidência, o que não é normal é o teor da conversa. Um advogado não pode pedir ao secretário da Presidência que apure, junto a órgãos do governo, se um cliente seu está sendo investigado; o secretário não pode estar disponível para esse tipo de serviço encomendado. Da resposta do presidente se depreende que só Deus - e não os limites institucionais - protege as pessoas de gravação de telefonemas.

Na conversa gravada pela Polícia Federal, Carvalho diz, com todas as letras, que o tal sujeito que teria abordado o cliente de Greenhalgh só pode ter identidade falsa: "O general me deu retorno agora... Aqui não tem nada. O cara tava armando com documento falso, o que é muito comum no Rio de Janeiro." Na nota de explicação para a conversa em que ambos transportam para a esfera pública uma camaradagem que tem de estar restrita às questões privadas, Gilberto Carvalho garante ter dito que, sim, o tenente em questão estava credenciado na Presidência. Foi um momento pitoresco ouvir a voz do secretário dizendo uma coisa e ele, em nota, garantindo não ter dito o que todos o ouviram dizer. Mas tudo vai ficar por isso mesmo. A moribunda CPI do Grampo tenta ressuscitar com este episódio, mas não vai convocar exatamente os dois envolvidos neste espantoso diálogo.

Pelo visto, o surto de nonsense vai ter agora outro capítulo com o ex-banqueiro Salvatore Cacciola. O habeas corpus concedido pelo presidente do STJ, Humberto Gomes de Barros, para que não fosse algemado ao chegar ao Brasil foi com o argumento de que ele "é idoso". Cacciola é um condenado que fugiu do país aproveitando-se de um habeas corpus e não foi preso num asilo de velhos, e, sim, em animada viagem a Mônaco.

Este caso mal começou. O risco é que a trapalhada continue e sirva para minar a confiança dos cidadãos nas instituições do país. O risco é, mais uma vez, o país ter que engolir o inaceitável, o comportamento desviante de autoridades. O risco é o caso ser esquecido antes de ser esclarecido, como aconteceu com o compadre do presidente Lula, Roberto Teixeira, que também usava os privilegiados canais que tem para beneficiar os clientes da sua banca de advocacia.

TUDO LADRÃO
Carlos Alberto Sardenberg


As pessoas estão dizendo que a Lei Seca é uma arbitrariedade e que a polícia está fazendo uma baita intimidação com as batidas. Dizem que ninguém é obrigado a soprar o bafômetro. E que, de todo modo, a "tabela" para zerar o índice alcoólico é de 600 reais, nas grandes cidades. Mais ainda: logo a lei cai no esquecimento.

As pessoas também estão dizendo que a Polícia Federal faz muito bem de algemar esse bando de banqueiros e seus comparsas. E que "esse" Gilmar Mendes só pode estar levando algum para soltar todo mundo, isso provando que a lei não funciona para os ricos.

São opiniões que a gente ouve por aí - senso comum. Mas não podem estar corretas ao mesmo tempo. Por que a Polícia Federal pode algemar seus suspeitos e a Polícia Militar não pode obrigar os seus a soprar o bafômetro?

Uma opinião coloca direitos individuais (cada um sabe seu limite de bebida, por exemplo) contra a arbitrariedade da lei e da polícia. A outra vai pelo caminho inverso: dá à PF o poder de decretar a culpa e já sair punindo os suspeitos com algemas e prisões.

Bem vistas as coisas, os dois pontos de vista estão errados.

A Lei Seca não é uma arbitrariedade. Qualquer adulto pode beber quanto quiser. O que não pode é dirigir depois de beber - e na via pública, porque isso põe em risco a vida de outros, que não têm nada com isso. É o caso clássico em que o direito de um interfere no do outro. Se alguém quiser encher a cara e dirigir um carro de corrida em sua propriedade particular, isolada, sem ameaçar ninguém, sinta-se à vontade.

Muitos entendem e estão respeitando a lei. Parece, porém, pelo que se ouve aqui e ali, que a maioria está contrariada. As batidas têm apanhado a classe média, não os pobres, e essa classe tem uma relação ambígua com as leis. Reclama que não funcionam, mas não gosta quando se vê apanhada pela lei. Acha que a polícia não faz nada, mas reclama quando cai diante dos policiais.

Esse pessoal entende também que sempre se pode driblar a lei e a polícia com alguma astúcia, um "sabe quem eu sou", um "deixa pra lá, gente boa" ou, no limite, uma propina. Nesses termos, as ações ostensivas da polícia, públicas (ou republicanas), não são bem-vistas. Impedem a conversa "aqui entre nós". Por que então a satisfação com as ações espetaculares e televisionadas da Polícia Federal? Porque apanha os outros, melhor ainda se os outros são ricos.

Aqui, o senso comum parece coincidir com a ideologia de muitos integrantes da Polícia Federal, do Ministério Público e do Judiciário. Para o senso comum, se não todos, quase todos os ricos são culpados e se aproveitam do seu dinheiro para levar vantagens.

Lendo o relatório da Polícia Federal na operação Satiagraha, pode-se observar por trás de tudo uma profunda desconfiança com o negócio financeiro, em particular, e com o capitalismo em geral. Movimentações de dinheiro parecem suspeitas simplesmente por serem isso, movimentações volumosas. O sistema é descrito como predador, um polvo cujos tentáculos envolvem o mercado, a imprensa, juízes, políticos, os bastidores dos governos.

É por isso que muitos policiais, promotores e mesmo juízes defendem ritos sumários e restrições, por exemplo, à concessão de habeas corpus. Como se parte do conceito de que o capitalismo é um mal e de que o mercado financeiro é sua pior parte, todos os que estão ali já são culpados. Só falta grampear e colocá-los na cadeia.

Isso fragiliza a investigação e a denúncia. Partindo do suposto de que estão diante de criminosos, os policiais federais tendem a se satisfazer com qualquer indício e a tomar como prova simples suspeitas. Assim, um pedido de orçamento de compra de artigos já publicados parece manipulação da mídia.

Com isso, não se produzem as provas efetivas, a demonstração de que o dinheiro foi roubado. Isso aparece no andamento do processo, quando os caras são soltos. E tudo parece se encaixar. O delegado prende, o ministro do Supremo solta e o governo afasta o delegado. Não estava mesmo tudo dominado?

Um desastre, porque, pelo jeitão da coisa, há mesmo ilícitos a apurar, especialmente nas conspícuas ligações do capital privado com o Estado. Mas isso não aparece. E quando um juiz lembra que o princípio básico da civilização é o da inocência, que a prisão vem depois do processo e da prova, isso parece uma manobra para livrar óbvios culpados.

Tempos difíceis.


CARLOS ALBERTO SARDENBERG é jornalista.
RECONCILIAR O RIO DE JANEIRO COM A CONSTITUIÇÃO DE 1988
Marcelo Baumann Burgos1


O Rio foi uma das cidades que mais fez pela conquista da Constituição de 88.

Partiu dela boa parte da energia cívica que tomaria conta do país na década de 1980, quando a Cidade se viu tomada por um intenso e diversificado associativismo em torno dos bairros e das favelas, da questão operária, ambiental, da infância, das questões da mulher e racial. Em torno desses movimentos sociais se aglutinaram partidos de centro e de esquerda, além das universidades e dos intelectuais. Toda essa mobilização andou junto com uma participação eleitoral de clara oposição ao regime militar e com a luta pela redemocratização, que culmina na memorável mobilização das Diretas – Já, em 1984, que levou mais de um milhão de pessoas no comício da Candelária.

Tamanha importância na reconstrução do projeto de país fez do Rio um dos principais, senão o principal, centro de animação e inspiração do núcleo dogmático da Carta de 88, cujo espírito foi insculpido no seu generoso preâmbulo, que instaurou os “direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social”.

Ironicamente, vinte anos depois da promulgação da Carta Cidadã, constata-se, com desalento, que nenhuma das grandes cidades brasileiras parece estar tão distante do ideário de 88 quanto o Rio de Janeiro. Com índices insuportáveis de violência, uma sociabilidade marcada pela baixa civilidade, e politicamente loteado em territórios dominados por “donos do pedaço”, o Rio pouco conseguiu se beneficiar dos incentivos à participação democrática inscritos em uma Constituição de notável inspiração municipalista.

Ao contrário, a Cidade parece estar se afastando daquilo que Luis Roberto Barroso chamou de “sentimento constitucional”, quando definiu a capacidade da Constituição para “simbolizar conquistas e mobilizar o imaginário das pessoas para novos avanços”. E, não por acaso, o Rio de Janeiro é uma das cidades onde os mecanismos de judicialização da política e da vida social – última retaguarda da democracia constitucional – mais vêm sendo utilizados, através do recorrente recurso ao Tribunal de Justiça para a apreciação de ações diretas de inconstitucionalidade questionando normas aprovadas pela Câmara, do uso intensivo de ações populares e civis públicas interpelando a improbidade administrativa e a omissão do poder público, da presença marcante do Ministério Publico na regulação de conflitos da cidade, em áreas como meio ambiente, e direitos de minorias e de segmentos fragilizados como crianças e idosos, e, ainda, da crescente dependência da ação fiscalizadora da representação política exercida pelo Tribunal Regional Eleitoral.

De fato, a Cidade parece estar abandonando suas melhores tradições cívicas.

Com uma administração pública afastada da sociedade civil organizada, e com baixa capacidade de reação política através da via partidária, sua população não ocupou, senão muito timidamente, os espaços participativos abertos pela Carta de 88, seja em torno dos conselhos populares – em áreas estratégicas como educação, saúde e infância –, seja através do Plano Diretor, instrumento criado para a regulamentação democrática da vida citadina. Tampouco apostou em canais alternativos para a discussão pública de temas relacionados à “função social da cidade” de que falam a Constituição e o Estatuto da Cidade, como são os fóruns populares, o orçamento participativo, as audiências públicas ou, ainda, as mídias alternativas.

Uma cidade desanimada e amedrontada é o legado das duas últimas décadas, e que, por isso mesmo, acompanha passivamente a tendência de fragmentação territorial, cujos efeitos se fazem sentir na crescente submissão de favelas, loteamentos e bairros às milícias, aos seguranças privados, e a gangsters que usurpam o espaço da política para se apoderar de parcela da Cidade.

Levada ao limite, essa tendência pode destruir a possibilidade de um projeto comum de Cidade.

Prova maior de sua impotência diante desse quando de ameaça à Cidade é a sua crônica incapacidade para superar sua principal questão urbana, que é a relação com as favelas.
Diversamente do que as melhores expectativas acalentadas nos anos de 1980 faziam esperar, as favelas não foram integradas à Cidade, ou pelo menos não foram integradas à Cidade da Constituição. Malgrado o investimento em urbanização e em política e ações sociais, que melhoraram sua infra-estrutura urbana e o acesso a oportunidades e equipamentos coletivos de seus moradores, mais do que nunca as favelas têm sido tratadas como territórios à margem da Constituição e do Estado Democrático de Direito. Ao jugo do tráfico e da milícia, que submete a população desses territórios a toda sorte de arbítrio, se junta a ação imprudente e igualmente arbitrária do Estado, através das polícias civil e militar. Evidências fortes disso são, para citar apenas os mais recentes, os lamentáveis e injustificáveis episódios como o da desastrosa e trágica atuação do Exército no Morro da Providência, que resultou na morte de três jovens; e, principalmente, a mega-operação policial realizada em junho de 2007, no Complexo do Alemão, que envolveu cerca de 1200 policiais, e que deixou um rastro de sangue, com vários feridos, inclusive crianças, e 19 pessoas mortas com claros sinais de execução, além de uma incomensurável seqüela psicológica em uma população de mais 70 mil habitantes. O descompasso entre o custo humano desse tipo de operação e o seu resultado prático fica evidente quando se considera que o saldo da operação teria sido a apreensão de apenas 14 armas.

A experiência vivida pelos moradores do Alemão não encontra nenhum respaldo na Constituição, e nem mesmo se tivesse sido decretado o “estado de defesa”, previsto em seu artigo 136 – o que já seria um absurdo – nem assim os direitos à vida, e à integridade física e psíquica de toda uma população poderiam ter sido violados como foram. O mais grave, porém, é que a afronta à Constituição não encontrou na Cidade, senão em setores isolados, a reação indignada que dela se deveria esperar.

Com o novo ciclo eleitoral, abre-se uma janela de oportunidade para a Cidade, pois uma nova câmara e um novo prefeito poderão jogar um papel importante na sua reanimação, despertando a memória cívica que nela ainda repousa. Para tanto, seria importante que a Cidade conseguisse viver o processo eleitoral, debruçando-se sobre temas municipais como a questão da educação pública, excessivamente fechada no interior de escolas que já não pretendem funcionar como pólos de civismo; a questão do transporte público, há muito refém dos lobbies de empresários e do laissez faire das kombis e vans; da segurança pública, que longe de ser matéria exclusivamente estadual e federal pode e deve ser estruturada segundo uma perspectiva preventiva de alcance municipal; da saúde pública, que reclama políticas de aproximação com a
população; da questão habitacional, que deve incluir a participação dos moradores das favelas na discussão sobre o problema da favelização; e, ainda, da questão metropolitana, que carece de uma atuação mais positiva do Município do Rio na sua condução.

Mas, o que é realmente indispensável nesse momento é reconciliar a Cidade com a Constituição que ela tanto ajudou a criar, através do fortalecimento daquilo que Luiz Werneck Vianna define como as “duas democracias” que ela encerra: a da dimensão participativa e a da dimensão representativa. Por isso, antes mesmo de pensar na reforma das políticas públicas setoriais, será necessário lutar para devolver à Cidade o direito de acesso à Política, da qual ela está momentaneamente privada. Para tanto, será preciso criar mecanismos e espaços de comunicação que permitam que os diferentes segmentos da Cidade voltem a se encontrar e a conversar, incorporando, desta vez, os interesses e as opiniões dos novos seres citadinos oriundos dos segmentos emergentes das favelas e periferias. Somente assim será possível formular uma nova imaginação sobre a Cidade, e construir uma agenda pública que a reconcilie
com os valores supremos de que falam o preâmbulo da Constituição.

1 Sociólogo, professor da PUC-Rio, assessor da UNIG e membro do Centro de Estudo de Direito eSociedade (CEDES/IUPERJ)

DEU EM O GLOBO


DINHEIRO!
Cora Rónai


Ganhar dinheiro é uma ambição humana universal, legítima e eterna. Dinheiro não traz felicidade, mas manda buscar; resolve problemas de educação, moradia e saúde; compra supérfluos indispensáveis; e, desde que elas se esforcem um pouquinho, torna as pessoas mais bonitas, mais magras e mais bem vestidas. Ainda que não mais elegantes. Mas aí já é outra história.

Na base da felicidade estão, pelo menos em tese, o sossego e a paz de espírito, e é razoável supor que a maioria dos seres humanos corra atrás de dinheiro em busca de mais segurança e sossego.


Os limites individuais disso variam enormemente. Eu seria feliz com o suficiente para viajar sempre que me desse na telha e para não precisar me preocupar com o futuro dos próximos seis meses. Há quem, embora não ligue para viagens, não abra mão, nos seus sonhos, de um carro zerinho. De preferência blindado. Há quem queira uma casa no campo ou na praia; um veleiro. E há os que, pura e simplesmente, querem só ficar de barriga pra cima e não mexer mais uma palha.

Compreendo qualquer espécie de sonho, assim como compreendo que pessoas com diversos degraus na escadaria da ambição dediquem-se com maior ou menor empenho à realização dos seus objetivos. Só não entendo para que passar a vida caçando dinheiro quando já se tem mais do que se pode gastar em várias gerações, e quando, na esteira do excesso de pecúnia, vem uma bagagem medonha de desassossego. De que adianta ter toda a grana do mundo e entrar no escritório às sete sem hora para sair, não confiar na própria sombra, não gostar de comida, sexo ou conversa fiada, trabalhar sem parar e viver com medo da polícia?! Isso lá é vida?!

Daniel Dantas, por exemplo. Foi preso, solto, preso e, sem nenhuma surpresa para ninguém, solto novamente (está na hora de investigar o juiz que o soltou, não o que o prendeu). Pergunto: isso vale a pena (jurídica)?! O inconveniente, o estresse, as manchetes nos jornais, para não falar da noite com o Pitta na mesma cela?! A Polícia Federal que me perdoe, mas esse cara não tem que ser preso, tem que ir para um hospício.

Sei que o que não falta ao dr. Dantas é advogado, mas apresento, a título de contribuição à sua defesa, essa mais que legítima tese de insanidade mental. O meu PF (não é Policia Federal, é Por Fora) a gente discute depois.

- Você, mais uma vez, não entendeu nada - dizem as pessoas que nunca entendem nada. - O que faz a cabeça de um tipo assim não é dinheiro, é poder.


Poder. Perfeito. Ainda assim, para que serve o poder pelo poder, já que não consta que, em nenhum momento, o dr. Dantas tenha tentado mudar o mundo? Serve, sejamos sinceros, para aquela coisa rasteira e menor que motiva os políticos brasileiros, vale dizer, descolar uma vida mansa e interessante às custas do contribuinte. E para juntar mais dinheiro - o que nos leva de volta à casa um. A questão é que, para usufruir disso, é preciso ter algo que se pareça minimamente com uma vida. Chegar ao escritório às sete sem hora para sair, não confiar em ninguém, blá blá blá... Repito: isso lá é vida?!


Nessa história de dinheiro, por sinal, o exemplo de casa é sempre muito importante. Vejam o caso do Eike, esse rapaz simpático que me conquistou quando disse que queria despoluir a Lagoa. Ele teve um ótimo exemplo em casa. O pai era ministro das Minas e Energia, e ele, visionariamente, comprou umas terrinhas lá nos cafundós onde, logo depois, descobriu-se uma mina de ouro. Daquelas bem reluzentes.


Já eu segui os passos dos meus pais, ambos professores. Por isso eu, em vez de comprar umas terrinhas auríferas, como faria qualquer jovem bem orientada, dei de sair comprando livros. Francamente! Aí está o resultado - o Eike comprando minas até hoje, e eu aqui até hoje comprando livros. Moral: um mau exemplo na infância ferra a pessoa para o resto da vida.


Ultimamente, meu consolo de pobre são as "edições limitadas".


Encomendei um produto para cabelo. É uma loção chamada Complexe 5, que existe há pelo menos 20 anos, e que, dessa vez, veio numa embalagem completamente diferente daquela à qual estou habituada. Olhei com mais atenção: na parte de trás está escrito "Édition limitée, 06325/20000".


Notem que não se trata de um perfume com frasco de cristal numerado e valor de coleção, nada disso; trata-se de um prosaico tônico capilar, com a velha fórmula de sempre, que tenta afagar o meu ego classe média com a falsa sensação de usar algo exclusivo.


Depois foi a coleção do "Blade runner", que saiu numa caixa com a (má) edição do diretor e a outra, que foi exibida nos cinemas, e da qual eu tinha tanta saudade. Há muitas outras alegrias na caixa, a começar por ela mesma, que parece uma maletinha: a versão final de Ridley Scott; a que foi exibida nos cinemas americanos; um DVD cheio de extras; uma miniatura do spinner; um unicorniozinho prateado... Enfim, um tesouro, mas um tesouro humilde, que me custou US$63 na Amazon (parte da fortuna da Amazon vem das minhas economias). Pois, no fundo da caixa, o que se lê? "Limited edition, 035913/103000". Não! Vocês acreditam?


Vocês estão lendo uma das 103 mil pessoas que possuem essa exclusivíssima caixa!!!


Eu ainda não tinha me recuperado da emoção deste privilégio quando, lendo a embalagem do iogurte no café da manhã, dei com uma barrinha dourada que nunca vira antes. E adivinhem o que está escrito lá? Ganha um doce quem responder "edição limitada".


E o que é Daniel Dantas tem a ver com as "edições limitadas" ilimitadas? A rigor, nada. Mas um assunto puxou o outro porque me peguei pensando sobre o ser e o ter, hoje tão filosoficamente misturados que mesmo as pessoas mais objetivas têm dificuldade de perceber o que é uma coisa e o que é a outra.


Em tempo: guarde bem este jornal! Ele é um exemplar único da edição limitada desta quinta-feira.

DEU NA FOLHA DE S. PAULO


NEGÓCIOS? NEM LEGAIS
Clóvis Rossi


SÃO PAULO - Sergio Ramírez é um notável escritor nicaragüense, que se tornou revolucionário, lutou com a Frente Sandinista de Libertação Nacional contra a nefanda ditadura Somoza, elegeu-se vice-presidente e, afinal, rompeu com os companheiros, horrorizado com o nível de corrupção a que se dedicaram uma vez instalados no poder.

No auge do escândalo do mensalão, ele me disse uma frase que não me sai da cabeça: "Se eu fosse presidente, antes da posse chamaria todos os parentes e amigos e lhes diria que, durante o meu governo, não poderiam fazer negócios. Nem negócios legais".

O Brasil certamente seria um país melhor se o presidente Lula tivesse adotado o conselho. É incrível a quantidade de parentes, amigos e companheiros próximos do presidente envolvidos em negócios, talvez legais, talvez não, em um país em que jamais se esclarece definitivamente algo que implique política e políticos.

O filho do presidente envolveu-se em negócios, justamente na área de telefonia, que foi um dos focos de atuação de Daniel Dantas. Envolveu-se em negócios, vários aliás, o compadre do presidente, o advogado Roberto Teixeira. Aparece em "grampos", também relacionados ao caso da telefonia, o atual secretário-geral do PT, José Eduardo Cardozo, justamente o que assumiu a bandeira da decência em um partido marcado pelo rótulo de "organização criminosa".

Para não falar em Luiz Eduardo Greenhalgh, que, por tabela, envolveu nos seus negócios o lealíssimo braço direito do presidente, Gilberto Carvalho. Todos dizem que são negócios legais ou intervenções inocentes. Mas ajudaram a criar esse ambiente de pântano em que a República vive mergulhada.

PS - Graças a habeas corpus concedido pela Folha, fujo para 10 dias de férias.

DEU NA FOLHA DE S. PAULO


DO ABAFA À INDIGNAÇÃO
Eliane Cantanhêde



BRASÍLIA - Na terça, os delegados da operação Satiagraha se recolheram (ou foram recolhidos) à sua insignificância, o diretor-geral da PF tirou férias, e o presidente do Supremo e o ministro da Justiça trocaram de bem, sob as bênçãos do presidente da República. A imprensa ficou falando sozinha de Celso Pitta, Naji Nahas e Daniel Dantas -que são o que interessa.


Ontem, o governo percebeu o erro monumental que estava cometendo. Diante da evidência de pressões para abafar o caso e da indignação generalizada, houve um meia-volta-volver: Lula fez o gênero indignado com as "insinuações", o delegado tomou depoimento de Dantas, até a Justiça tocou o barco.


No início do imbróglio, Lula conclamou todos a "andar na linha", porque os tempos são outros: "Quem achar que pode viver de picaretagem algum dia vai cair". Mas vai demorar, presidente...Por enquanto, a discussão é outra: preservar o Estado Democrático de Direito, coibir abusos contra cidadãos ilibados e expostos com algemas à execração pública e investir mais nas Defensorias Públicas, que vão igualar, já, já, os pobres e os ricos diante da lei e da ordem.


O melhor mesmo (para os suspeitos) é pular a fase do inquérito e ir logo para a do processo: de recurso protelatório em recurso protelatório, as testemunhas não têm mais crédito, as provas são desqualificadas, e os delegados, juízes e promotores, ironizados por só quererem aparecer. As acusações desmoronam como castelo de cartas. E TVs, rádios, jornais elegem outros temas, igualmente quentes.


Daqui a algum tempo, sobra uma leve lembrança de habeas corpus concedidos tarde da noite e da discussão algema-não-algema. Pitta, Nahas e Dantas nem precisarão se dar ao trabalho de disputar eleições para a Câmara ou o Senado -na prática, foro privilegiado é o que não lhes falta.


Ah! E vamos ligar logo a TV. O jogo do Corinthians vai começar.

DEU EM O ESTADO DE S. PAULO

LÁ, COMO CÁ
Celso Ming

O estrago da inflação sobre a vida do americano médio é maior do que os especialistas vinham prevendo.

Ontem saiu o Índice de Preços ao Consumidor (CPI, na sigla em inglês). Acusou um avanço de 1,1% sobre o mês anterior, substancialmente maior do que o 0,7% com que as projeções vinham trabalhando. No período de 12 meses terminados em junho, a inflação foi de 5,0%. Apenas para comparar, o IPCA brasileiro foi de 0,74% em junho e atingiu 6,06% em 12 meses.

O combustível para o disparo desse foguete é a alta dos alimentos mais a da energia (petróleo e derivados). Se esses dois componentes fossem tirados da lista - como gosta de argumentar o ministro da Fazenda, Guido Mantega, em relação à inflação brasileira -, em junho a inflação americana não teria passado de 0,3% e, em 12 meses, dos 2,4%.

Nos Estados Unidos, os preços assim expurgados constituem o núcleo da inflação (core inflation), usado como referência para a definição dos juros pelo Federal Reserve (Fed, o banco central americano).

Essa fantasia estatística não serve de refresco para o consumidor americano. Ninguém pode parar de se alimentar e, por lá, as condições de consumo são tais que também é difícil deixar de queimar a mesma quantidade de combustível.
Na prática, isso significa que, na planilha mensal de despesas, as famílias americanas estão gastando mais em comida e em combustível. Assim, sobra menos do salário para as demais despesas.

Em condições normais, o Fed já teria usado seu arsenal de política monetária (política de juros) para derrubar a inflação. Mas o atleta está com sérias lesões musculares. Puxar pelos juros seria obrigá-lo a disputar uma maratona.

A economia dos Estados Unidos está sobrecarregada com problemas agudos. A crise do mercado imobiliário provocou uma trombose no crédito; enorme quantidade de bancos (pequenos, médios e até grandes) está ameaçada por problemas de liquidez. Grandes empresas enfrentam grave retração do mercado. Assim, um aperto monetário agora parece impraticável. O Fed está dando prioridade a manter a economia com o nariz fora da lâmina d’água. Os juros básicos (Fed funds) nominais a 2,0% ao ano continuam fortemente negativos.

A síndrome de inflação alta e juros negativos, por sua vez, produz outra distorção e um círculo vicioso. A distorção são rendimentos também negativos nas aplicações financeiras. As Notas do Tesouro americano de 2 anos, por exemplo, vêm pagando uma remuneração ao redor dos 2,4% ao ano e as de 10 anos, cerca de 3,9%.

Tudo isso ajuda a derrubar o dólar no câmbio internacional. Como a moeda americana é a principal unidade de conta do planeta, os preços das commodities tendem a subir em conseqüência dessa desvalorização e isso turbina a inflação. É o círculo vicioso.

Tudo isso, por sua vez, é parte de um enorme processo de ajuste cuja trajetória é incerta. Não se sabe sequer se será suficiente para dirimir as distorções.
O Brasil está no meio dessa chuva. Mas, a acreditar na percepção geral, vai sair dela melhor do que quando entrou. Assim seja.

CONFIRA

Eclipse - A Operação Satiagraha, que expôs manobras do banqueiro Daniel Dantas supostamente contrárias ao interesse público, produziu efeito previsível: escondeu ou deixou ao quase esquecimento outros escândalos que antes tomavam o espaço dos jornais e do noticiário das TVs. Quase não se fala mais do advogado Roberto Teixeira e de seu jogo no caso Varig.

Safra boa - Mais alguns dias e sairão os balanços semestrais dos grandes bancos. O mercado já espera pelos habituais lucros fantásticos. Por conta disso, ontem as ações do Itaú subiram 9,1%; do Bradesco, 7,2%; do Unibanco, 7,6%; e do Banco do Brasil, 4,0%.

DEU NA GAZETA MERCANTIL

O PAÍS QUER OUVIR QUEM SABE TUDO
Augusto Nunes

FALA, DANTAS!, exortou a revista Veja na capa ilustrada pelo rosto inescapavelmente tenso do personagem que se apropriou, durante uma semana inteira, de todas as manchetes da imprensa e das chamadas de abertura de todos os telejornais. "Conta tudo, Daniel Dantas", tornaram mais abrangente o apelo mensagens multiplicadas pela corrente na internet que vai assumindo proporções tão impressionantes quanto a ladroagem devassada pela Polícia Federal. Conhecer a história completa, narrada pelo protagonista e sem a omissão de um único detalhe, um único episódio, um único nome - eis aí o sonho dividido por milhões de passageiros da esperança, que insistem em agir honestamente num país que reduziu a ética, a decência e o respeito à lei a coisas de otário.

Até o fim de junho, os inquéritos e processos que tratam das façanhas de Dantas bastariam para a montagem de um livro condenado ao êxito. Sobram leitores ansiosos por conhecer a saga do baiano nascido numa família de classe média que virou aluno genial na faculdade de economia que virou menino prodígio com dois ou três negócios que virou um dono de banco cobiçado por todos os investidores com muito dinheiro e pouca paciência que virou bandido pela pressa em juntar bilhões. e que fez tudo isso sem perder o direito de ir e vir. E que está cada vez mais rico. Não é pouca coisa.

Mas não é tudo, informou neste começo de julho a primeira amostra do baú de revelações obtidas pela operação executada em parceria por agentes da Polícia Federal e integrantes do Ministério Público, e sustentada pela independência do juiz federal Fausto De Sanctis. Agora está comprovado que, há mais de 10 anos, Dantas aluga figurões infiltrados nos três poderes, distribui propinas entre os que prendem ou soltam, suborna e intimida os que nomeiam ou demitem, sustenta bancadas suprapartidárias de bom tamanho no Congresso.

A devassa dos porões controlados por Dantas resgatou da semiclandestinidade o chefe da maior e mais atrevida quadrilha da história do sistema financeiro nacional. Ele chegou ao posto com a cumplicidade de pais da pátria da Era FH. Nele se manteve depois de adquirir a simpatia de Altos Companheiros da Era Lula. Nos anos 90, embolsou bilhões depois de presenteado com o mapa da mina da telefonia. Acaba de anabolizar a fortuna imensa por ter facilitado, com a venda do que conseguiu irregularmente, uma transação ilegal desejada pelo governo.

Essas descobertas avisam que o livro sobre a segunda vida de Dantas será mais que a narrativa de uma biografia singularíssima. Será um clássico da literatura político-policial. E tem tudo para ser promovido à estante das leituras indispensáveis aos interessados em conhecer o Brasil das sombras. Basta que Dantas decida falar. Basta que conte tudo. Só ele pode explicar as diferenças entre uma negociação com os donatários dos fundos de pensão durante o reinado neoliberal e um acordo com José Dirceu. Só Dantas sabe quem é o "João" e quem é a "Letícia" rabiscados naquele papel ao lado de boladas consideráveis.

Para livrá-lo das investigações da PF, emissários do chefão ofereceram US$ 1 milhão a um delegado da Polícia Federal. Dantas sabe quanto custava um deputado nos tempos de FH e quanto custa hoje um senador O preço de um juiz é calculado segundo a instância em que se aloja?, pergunta o país. Por que Dantas tem medo da Polícia Federal e da primeira instância do Judiciário? Por que confia no STJ ou no STF? Como foram as conversas com Lulinha. Enfim, qual é o organograma da quadrilha?

Até agora, Dantas valeu-se do silêncio para escapar da cadeia. Se for condenado por algum crime menor, mas amplamente documentado, poderá sentir-se tentado a abrir a boca. Foi o que fez a polícia americana para engaiolar Al Capone. Já que faltavam provas para prendê-lo por assassinato, extorsão, roubo e outros crimes de alta voltagem, o mitológico mafioso acabou em Alcatraz por ter lesado o Fisco. Sobram provas materiais para enquadrar Daniel Dantas por ter tentado subornar um delegado da Polícia Federal.

Ao trabalho, policiais, promotores e juízes. O Brasil quer ouvir o delinqüente que sabe tudo. Convençam o homem a falar.

OS PERIGOS DA DEMONIZAÇÃO DA PF
Maria Inês Nassif


O corpo burocrático do Estado tende a reivindicar a representação da racionalidade, mas sequer a racionalidade é neutra. A Constituinte de 1988 deu autonomia ao Judiciário e ao Ministério Público e aumentou os controles sobre um aparelho policial hipertrofiado pela ditadura, obrigando a sua profissionalização. Ao longo dos 20 anos de amadurecimento democrático das instituições, ora uma, ora outra, avança sobre o espaço das demais, reivindicando para si a capacidade de agir racionalmente em nome do Estado.

É possível em cada uma das unidades da Federação mapear conflitos entre instituições - ou alianças eventuais - e, ao longo de suas cadeias hierárquicas, apontar acúmulo ou esvaziamento de poder em instâncias estaduais e federais. O episódio da prisão e soltura dupla do empresário Daniel Dantas - prisão dupla pelo juiz de primeira instância, Fausto de Sanctis; soltura dupla pelo presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), Gilmar Mendes - é a personificação do conflito. E a mostra efetiva de que, se em algum momento as instâncias inferiores da Justiça, o MP e a Polícia Federal (PF) tiveram protagonismo em questões nacionais importantes, ele vem sendo gradativamente esvaziado em favor de uma concentração de poderes nas mãos da mais alta corte judiciária do país.

O ativismo judicial, defendido por parcela da opinião pública como uma garantia de que a "racionalidade" do STF conteria a "irracionalidade" da ação política do Legislativo, produziu outras crias. O Supremo ocupou cada vez mais espaços - hoje não apenas tem o instrumento constitucional da súmula vinculante, mas desfrutou (pelo menos até agora) de uma legitimidade autoconferida por um entendimento do que é o "clamor público", e com esse mandato promoveu a adequação das leis à sua própria racionalidade. A reação dos juízes contra a decisão do presidente do STF, acompanhada por outra igual dos procuradores - e de uma contra-reação dos advogados e defensores públicos - mostra que também a racionalidade do aparelho burocrático do Estado é política. Pode não ser partidária, mas é política.

Mendes transitou por várias instituições

A demonização da política foi o primeiro passo para a legitimação do ativismo judiciário. A apropriação do senso comum de que o político eleito é corrupto, até que se prove o contrário; de que os partidos são por princípio venais; e de que a política sempre encerra interesses inconfessáveis, tem legitimado a atuação legislativa do STF. Também foi ela que moveu as espetaculares ações da PF - investigações agressivas, quase "sentenciatórias", que nem sempre foram referendadas pelas várias instâncias do Judiciário. A Operação Satiagraha, que levou à prisão o empresário Daniel Dantas, deve marcar um refluxo na ofensiva da PF de ocupar o espaço de outras instituições, mas pode perigosamente concentrar mais poderes no STF. A demonização da PF, tal como antes aconteceu com os políticos em geral, já começou - à polícia passou a ser atribuída incompetência investigativa, leviandade e sensacionalismo. Isso é generalizar o que não é generalizável: as ações da PF não são em geral rasas, levianas ou sensacionais; assim como os políticos não são genericamente corruptos.

A demonização da PF tende a concentrar mais poderes na instância maior da Justiça. É um caminho perigoso, uma vez que o Supremo não dispõe de estrutura ou de capacidade investigatória. Todo o ativismo justificado até agora como um instrumento para tornar a justiça mais eficaz e célere pode resultar num afunilamento de decisões nas mãos do STF, com prejuízo da celeridade e serenidade nos julgamentos.

O ministro Gilmar Mendes, pelo seu currículo, seria a pessoa indicada para colocar essa disputa de poder entre instituições no limite do tolerável. Afinal, ele é originário do Ministério Público, foi advogado-geral da União e agora preside o STF. Em três instituições, ele conviveu e assimilou "racionalidades" diferentes - como advogado-geral, assumiu a lógica do Executivo com fervor, inclusive contra o que achou ser irracionalidade do MP (de onde veio) ou do STF (para onde foi). Como ministro do STF, tem declarado oposição pública à Polícia Federal, ao ministro da Justiça e à MP. Como presidente do STF, agiu duro contra o que considerou rebeldia do juiz Fausto de Sanctis, que emitiu duas ordens de prisão contra o banqueiro. Por entendimento ou conflito, portanto, Mendes transitou pela lógica de diferentes corpos burocráticos e diversas instâncias judiciárias, jogando duro o suficiente para ampliar o poder da instituição da qual fazia parte no momento. Usou a sua capacidade ofensiva para o conflito. Talvez seja a hora de usá-la para colocar o poder de cada instituição - inclusive e principalmente do STF - nos seus devidos lugares.


Maria Inês Nassif é editora de Opinião. Escreve às quintas-feiras
O ESVAZIAMENTO DO RADICALISMO
Jarbas de Holanda



Da derrota de Hugo Chávez, no final do ano passado, no referendo em que buscou perenizar-se na presidência da Venezuela e consolidar, aprofundando, a institucionalização autoritária do país, até suas recentes guinadas de distanciamento das Farc e de reaproximação, calorosa, com o “hermano” Álvaro Uribe, da Colômbia, entre aquele e estes eventos desenvolveu-se nas Américas do Sul, Central e do Norte (México) um expressivo esvaziamento da onda e do apelo esquerdista. Que pareciam alastrar-se irresistivelmente nos últimos anos, dominando, ou quase, os diversos pleitos presidenciais realizados e as decisões de vários governos, por meio de uma receita populista agressiva baseada no revigoramento do “imperialismo “ norte-americano, numa escalada de estatizações e de restrições ao capital privado, doméstico e externo (inclusive de países vizinhos como o Brasil), na exacerbação de conflitos étnicos e classistas e em ações políticas e de caráter institucional para controle dos meios de comunicação e dos poderes legislativo e judiciário.

Apoiada nos petrodólares de Chávez, essa onda afirmou-se com as vitórias de Evo Morales, na Bolívia, de Rafael Correa, no Equador, de Daniel Ortega, na Nicarágua; manteve-se na Argentina, com a de Cristina Kirchner; e, por último, contribuiu para a do ex-bispo Fernando Lugo, no Paraguai. Todos esses atores com alta popularidade inicial. E o apelo do radicalismo populista quase venceu as disputas presidenciais no Peru e no México. Tudo isso enquanto Chávez procurava desestabilizar internamente e isolar no plano externo o governo democrático da Colômbia (inclusive armando e financiando as Farc).

Em pouco tempo, porém, a prática dessa receita está mostrando seus resultados econômicos e políticos nos diversos países que a ela se submeteram. Na Bolívia, a maioria dos estados (departamentos) aprovou referendos pró-autonomia, derrotando Evo Morales
e sem projeto centralizador de nova constituição. No Equador, o presidente Rafael Correa também enfrenta forte resistência contra projeto semelhante, e a economia recuou, crescendo apenas 2% em 2007, razões que ao lado de seu envolvimento com as Farc explicam sensível queda de popularidade que sofre. Na Argentina, o conflito com os agricultores, o desabastecimento conseqüente e o descontrole da inflação, já passando dos 25% anuais (a da Venezuela já chegou aos 30%), são os fatores básicos da queda vertiginosa da avaliação popular da presidente Cristina, para cerca de 20%, e de sua credibilidade, para 1,2 numa escala de 0 a 5. Na Nicarágua, o ibope de Ortega, que era altíssimo no ano passado, despencou para 21%. Enquanto isso, o governo centrista de Felipe Calderon, do México, eleito com apenas 36% dos votos, conta agora com uma aprovação social de 61%. O governo também centrista do Peru, de um Alan Garcia que deixou para trás o populismo de sua administração anterior no final dos anos 80, persistiu com as políticas de responsabilidade fiscal e abertura econômica do antecessor Alejandro Toledo, ganhando este ano o grau de investimento das agências internacionais de risco, atraindo grandes investidores em infra-estrutura, sobretudo em petróleo e gás, e impulsionando o crescimento. Por seu turno, o de Álvaro Uribe, na Colômbia, com sua dura política contra a criminalidade, inclusive a dos paramilitares, e a combinação do controle inflacionário com garantias aos investidores, reativa a economia do país e tem agora 92% de popularidade, após o profundo golpe aplicado nas Farc com a cinematográfica operação de resgate de Ingrid Betancourt, três americanos e 11 policiais militares colombianos.Outro indicador, emblemático, do esgotamento do radicalismo é a virada para o “socialismo realista” de Raul Castro, sintetizada em declarações dele no final da semana passada: “Igualdade não é igualitarismo. Este em última instância também é uma forma de exploração: a do bom trabalhador pelo que não é, ou, pior ainda, pelo vagabundo”.

Marta e seu adversário

Contando com o recall de ex-prefeita, reunindo toda a esquerda lulista e beneficiada pela divisão do pólo oposto entre Gilberto Kassab e Geraldo Alckmin, a candidata do PT Marta Suplicy, que ampliou para sete pontos, no último Datafolha, a vantagem sobre este (para 38% a 31%), poderá estendê-la ainda mais nas próximas pesquisas, subindo ao patamar de 40% das intenções de voto. O que, segundo nota recente do Painel da Folha, levou alguns petistas a preverem vitória dela já no primeiro turno, expectativa prudentemente negada pela própria, em declaração dada anteontem. Uma ascensão de Marta a esse patamar antecipará para bem antes do turno inicial da disputa a definição no campo dos tucanos e democratas em torno da candidatura representativa de um eleitorado que é basicamente o mesmo. O qual, dividido, potencializa a concorrente e, somado, certamente propiciará já nesta etapa o acirrado equilíbrio eleitoral que deverá caracterizar o enfrentamento entre os dois pólos no segundo turno.
Em face do reduzido percentual que continuou obtendo no Datafolha – no da semana passada menos da metade do de Alckmin, 13% contra 31% - Kassab será o alvo das pressões por tal definição,se não lograr um salto de intenções de voto em breve espaço de tempo. Neste caso, a erosão de sua candidatura começaria pelo desengajamento da maior parte dos tucanos serristas que seguem empenhados nela. Já se ele conseguir dar logo esse salto, voltando a se mostrar competitivo, a pressão unificadora do campo centrista se exercerá também sobre Alckmin.